A promoção da melhoria como ciência

MARSHALL, M. ; PRONOVOST, P. ; DIXON-WOODS, M.
Título original:
Promotion of improvement as a science
Resumo:

Os incríveis avanços do cuidado de saúde moderno tornam ainda mais visíveis as deficiências associadas à prestação desse cuidado. O cuidado de saúde é uma importante fonte de danos evitáveis,1,2 e os pacientes são expostos de forma rotineira a variações amplas e inexplicáveis na qualidade do cuidado que recebem.3 É muito difícil enfrentar essas variações, apesar das boas intenções, do foco das políticas de saúde, de programas de melhoria ambiciosos e do investimento de recursos.4 Uma importante razão para essa dificuldade é que o desejo de agir rapidamente pode se sobrepor à necessidade de reunir evidências que embasem as ações; por isso, boa parte do trabalho de melhoria de qualidade não é cientifico5 — isto é, não se baseia em evidências de alta qualidade nem está sujeito a avaliações rigorosas que determinem sua efetividade, custos e riscos. Ironicamente, a falta de uma abordagem científica pode levar a resultados diametralmente opostos aos pretendidos pelas iniciativas de melhoria: desperdício de recursos, perda de energia e de entusiasmo, negligência em relação aos efeitos colaterais das intervenções e ocorrência de poucas mudanças positivas. A adoção de uma abordagem mais científica para a melhoria tem um grande potencial para promover a prestação de um cuidado de alta qualidade e a otimização do uso de recursos nos sistemas de saúde.

Acreditamos que a ciência da melhoria se encontra naquilo que Kuhn6 chama de fase pré-paradigmática do surgimento de uma nova disciplina, que tem como uma de suas características a ausência de uma definição convencionada. As tentativas de criar uma definição podem gerar um debate intenso, e até agora não existe um consenso em relação ao termo ciência da melhoria.7 Don Berwick e o Institute of Healthcare Improvement (Boston, MA, EUA)8 influenciaram um dos usos mais comuns desse termo ao descreverem as aplicações da abordagem desenvolvida por W. Edwards Deming para reduzir a variação nos processos industriais.9 O movimento de melhoria da qualidade, associado a esses métodos, tem gerado contribuições valiosas, em parte por questionar as abordagens extremamente tecnocráticas, administrativas e regulatórias para a promoção de mudanças. Entretanto, essa conceitualização para uma ciência da melhoria é, em si mesma, estreita e restritiva demais para abordar os desafios enfrentados pelo setor de saúde; além disso, ela costuma dar pouca ênfase a avaliações robustas. A percepção da melhoria com base apenas na pesquisa sobre a implementação e a efetividade comparativa é igualmente inadequada.10

Um exemplo das vantagens de um modo de pensar mais abrangente encontra-se na redução das taxas de infecções da corrente sanguínea associadas a cateteres centrais em unidades de terapia intensiva. Tais infecções são um problema clínico importante e dispendioso, além de serem frequentemente fatais. Um estudo de coorte realizado em 103 unidades de terapia intensiva em Michigan, nos EUA, mostrou que um programa multicomponente com intervenções técnicas baseadas em evidências, intervenções adaptativas destinadas a afetar a cultura e os sistemas, e um sistema centralizado de coleta de dados e feedback resultou numa redução considerável das taxas de infecção.11 Essas reduções foram sustentadas ao longo do tempo e estiveram associadas a uma menor mortalidade nas unidades de terapia intensiva participantes em comparação com unidades-controle.12 Os resultados foram reproduzidos em outros 22 estados dos EUA. Trabalhos subsequentes investigaram os mecanismos de funcionamento do programa e resultaram numa teoria das mudanças que embasou e foi testada em réplicas subsequentes do mesmo programa.13

Outro exemplo dos benefícios dessa forma mais ampla de pensar é o aumento nos índices de identificação e encaminhamento das vítimas da violência doméstica. A violência doméstica muitas vezes não é enfrentada de forma adequada, apesar das importantes implicações sociais e de saúde relacionadas à violência não identificada e não confrontada. Um estudo controlado e randomizado por conglomerados realizado em 51 clínicas de atenção primária de duas cidades do Reino Unido (Londres e Bristol)14 testou uma série de intervenções baseadas em evidências destinadas a aumentar as taxas de identificação de mulheres vítimas de violência doméstica nos serviços de atenção primária e o seu encaminhamento a serviços de defesa especializados. O programa triplicou a identificação de casos de violência doméstica e aumentou em 22 vezes o número de encaminhamentos a serviços especializados no grupo de intervenção. Essas intervenções, que consistiram em programas educativos direcionados, estão agora sendo adotadas em várias regiões da Inglaterra.15

Esses exemplos mostram algumas das características distintivas de uma definição mais ampla para a ciência da melhoria. Esta ciência visa promover um aprendizado prático capaz de gerar mudanças em tempo hábil no cuidado de saúde. Ela caracteriza-se por seu amplo domínio de interesses, sua natureza aplicada e seu compromisso com a geração de um aprendizado prático que possa ser utilizado em situações reais. A ciência da melhoria reconhece e integra muitas contribuições, assemelhando-se, assim, à ciência da engenharia, que utiliza conhecimentos e teorias científicas para enfrentar problemas reais.

A ciência da melhoria também visa gerar uma sabedoria local e conhecimentos generalizáveis ou transferíveis, utilizando métodos de pesquisa robustos, bem estabelecidos e aplicados de forma extremamente pragmática. Ela promove melhorias locais e, sobretudo, produz conhecimentos com validade externa. Assim, o trabalho classificado como ciência da melhoria deve ter qualidade suficiente para ser publicado como um registro duradouro e disseminado em revistas científicas respeitadas. O desenvolvimento de conhecimentos locais baseados num forte senso de apropriação e em disposição para adaptar as atividades de melhoria é extremamente importante; porém, a avaliação da efetividade de muitos projetos de melhoria da qualidade depende de dados atuais, não padronizados e não verificados. Por outro lado, ao considerarmos requisitos morais e práticos,16 a ciência da melhoria caracteriza-se pelo seu compromisso com métodos de avaliação rigorosos e confiáveis e pelo uso de dados de alta qualidade. No entanto, a escolha dos métodos muitas vezes é guiada pelo pragmatismo e pela difícil realidade da implementação de intervenções e da coleta de dados em situações clínicas complicadas e altamente heterogêneas.

A ciência da melhoria precisa estabelecer uma parceria genuína entre acadêmicos e profissionais da linha de frente. Os pesquisadores trazem o ceticismo, o rigor científico e os conhecimentos técnicos e metodológicos, enquanto os profissionais clínicos trazem conhecimentos sobre o seu objeto de trabalho, uma compreensão abrangente sobre os contextos nos quais o trabalho ocorre e uma sabedoria prática. Acadêmicos e seus parceiros clínicos precisam colaborar para criar, executar e interpretar o trabalho da ciência da melhoria. O progresso para além das fronteiras limitantes da pesquisa tradicional sobre os serviços de saúde ou do trabalho de melhoria da qualidade pode ajudar a criar novas fronteiras para a pesquisa tradicional sobre os serviços de saúde. Além disso, o trabalho de melhoria da qualidade pode ajudar a formar novas sinergias e promover a criatividade juntamente com o rigor. As parcerias entre pesquisadores e profissionais clínicos, e também entre diferentes disciplinas, devem ser autênticas relações entre partes iguais, de modo que nenhum grupo seja visto como subordinado ou subserviente ao outro. Essas parcerias devem envolver o apoio mútuo e questionamentos saudáveis, em vez da proteção zelosa de domínios territoriais.

A ciência da melhoria baseia-se em teorias claras e explícitas sobre como ocorrem as mudanças e tenta contribuir com elas. Um importante componente da ciência da melhoria é a criação, implementação e avaliação de intervenções complexas e multifacetadas. As boas teorias, tanto as pequenas teorias17 de programas individuais como as grandes teorias sobre a ocorrência de mudanças, são tão essenciais para a ciência da melhoria quanto os bons métodos. Tendo em vista as dificuldades que encontramos ao tentar enfrentar as complexidades do cuidado de saúde moderno, o fato de que essas teorias utilizam elementos de uma série de disciplinas (da epidemiologia clínica à engenharia, da psicologia à sociologia) é benéfico. Muitas intervenções de melhoria são concebidas sem o benefício de explicações e conhecimentos prévios sobre as razões para a ocorrência de mudanças e a forma como estas ocorrem, o que faz com que muitas intervenções de melhoria da qualidade sejam como caixas pretas, difíceis de reproduzir em novos contextos. Se a teoria se tornar mais clara, será mais fácil enfrentar esse problema. A ciência da melhoria precisa agora começar o difícil trabalho de acúmulo sistemático e síntese de conhecimentos. Os projetos de melhoria são prejudicados e tornam-se menos efetivos quando ignoram a base de evidências coletadas no terreno, que está em rápido desenvolvimento.

A ciência da melhoria está genuinamente comprometida a beneficiar os pacientes e a promover o aprendizado colaborativo. Trabalhos recentes enfatizam a importância do aprendizado como um compromisso ético no cuidado de saúde.16,18 A ciência da melhoria abraça esse compromisso: os profissionais da linha de frente merecem ter acesso a evidências de alta qualidade que sirvam para embasar os seus esforços no tratamento dos pacientes, e esse aprendizado deve ser partilhado com outros profissionais. Ao combinar a ciência com as prioridades clínicas, reunir os profissionais que cuidam de pacientes com os que estudam esse tipo de trabalho e fazer com que todas as partes envolvidas estejam comprometidas com os mesmos valores, a ciência da melhoria tem um enorme potencial para gerar benefícios aos pacientes.19

É necessária uma abordagem estratégica para otimizar o impacto da ciência da melhoria. Em primeiro lugar, as comunidades administrativa, acadêmica e clínica devem aprender sobre a ciência da melhoria, entender a relação sinérgica entre esta ciência e as ciências biomédicas e clínicas tradicionais e saber de que maneira a ciência pode ser usada para promover mudanças no cuidado de saúde. É necessário criar um currículo comum para promover esse tipo de educação. Além disso, a academia precisa romper as fronteiras excessivamente rígidas e pouco prestativas entre seus diferentes departamentos e trabalhar com equipes interprofissionais que envolvam pesquisadores e profissionais clínicos; é preciso criar incentivos para fomentar essa cooperação. Em segundo lugar, é necessário disponibilizar competências e recursos em todos os níveis, dos líderes da ciência da melhoria aos profissionais da linha de frente. Em terceiro lugar, é preciso reconhecer a natureza contracultural da ciência da melhoria em relação aos serviços e setores acadêmicos tradicionais, dando espaço ao desenvolvimento de novas formas de pensar e agir. Para isso, será necessário redefinir alguns dos critérios de êxito tanto no setor acadêmico (no qual o desejo de gerar mudanças práticas raramente é recompensado) como no setor da prestação do cuidado de saúde (no qual o desenvolvimento e a utilização de evidências científicas nem sempre são muito valorizados). Em quarto lugar, a criação de uma rede ou organismo internacional que apoie essa ciência emergente e ajude os cientistas da melhoria a partilhar conhecimentos ajudará a garantir que a ciência se desenvolva como um empreendimento voltado para o exterior, de forma semelhante à Cochrane Collaboration, que ajudou a firmar as fundações da medicina baseada em evidências. Por último, é necessário financiamento para estabelecer e apoiar centros destinados à ciência da melhoria, reunindo diversas disciplinas acadêmicas e clínicas de áreas econômicas de saúde distintas. Se essa estratégia for bem sucedida, ao longo da próxima década, a ciência da melhoria tornar-se-á um componente essencial da prestação de um cuidado de saúde de alta qualidade para os pacientes.

Contribuições

MM teve a ideia original para o artigo e todos os autores desenvolveram o conteúdo. MM escreveu a primeira versão do artigo e PP e MD-W adaptaram-na e revisaram-na. MM é o autor responsável.

Conflitos de interesses

Declaramos não ter nenhum conflito de interesses.

Agradecimentos

M.D-W. é beneficiária de uma bolsa para pesquisadores-sênior do Wellcome Trust (número WT097899MF).

Referências

1 de Vries EN, Ramrattan MA, Smorenburg SM, Gouma DJ, Boermeester MA. The incidence and nature of in-hospital adverse events: a systematic review. Qual Saf Health Care 2008; 17: 216–23.

2 Landrigan CP, Parry GJ, Bones CB, Hackbarth AD, Goldmann DA, Sharek PJ. Temporal trends in rates of patient harm resulting from medical care. N Engl J Med 2010; 363: 2124–34.

3 QIPP/Right Care. NHS atlas of variation in healthcare 2011. http://www.rightcare.nhs.uk/index.php/atlas/atlas-of-variation-2011/ (acesso em 3 de dezembro de 2012).

4 Wachter RM. Patient safety at ten: unmistakable progress, troubling gaps. Health Aff (Millwood) 2010; 29: 165–73.

5 Auerbach AD, Landefeld CS, Shojania KG. The tension between needing to improve care and knowing how to do it. N Engl J Med 2007; 357: 608–13.

6 Kuhn TS. The structure of scientific revolutions. Chicago: University of Chicago Press, 1962.

7 The Health Foundation. Improvement science research scan. Londres: The Health Foundation, 2011.

8 Berwick DM. The science of improvement. JAMA 2008; 299: 1182–84.

9 Varkey P, Reller MK, Resar RK. Basics of quality improvement in health care. Mayo Clin Proc 2007; 82: 735–39.

10 Alexander JA, Hearld LR. The science of quality improvement implementation: developing capacity to make a difference. Med Care 2011; 49 (suppl): S6–20.

11 Pronovost P, Needham D, Berenholtz S, et al. An intervention to decrease catheter-related bloodstream infections in the ICU. N Engl J Med 2006; 355: 2725–32.

12 Pronovost PJ, Goeschel CA, Colantuoni E, et al. Sustaining reductions in catheter related bloodstream infections in Michigan intensive care units: observational study. BMJ 2010; 340: c309.

13 Dixon-Woods M, Bosk CL, Aveling EL, Goeschel CA, Pronovost PJ. Explaining Michigan: developing an ex post theory of a quality improvement program. Milbank Q 2011; 89: 167–205.

14 Feder G, Davies RA, Baird K, et al. Identification and Referral to Improve Safety (IRIS) of women experiencing domestic violence with a primary care training and support programme: a cluster randomised controlled trial. Lancet 2011; 378: 1788–95.

15 Abbasi K. Improvement in practice: the IRIS case study. Londres: The Health Foundation, 2011.

16 Faden RR, Beauchamp TL, Kass NE. Learning health care systems and justice. Hastings Cent Rep 2011; 41: 3.

17 Lipsey M. Theory as method: small theories of treatments. In: Sechrest P, Perrin E, Bunker J, eds. Research methodology: strengthening causal interpretations of non-experimental data. Washington: Agency for Health Care Policy and Research, 1990: 33–51.

18 Institute of Medicine. Best care at lower cost: the path to continuously learning health care in America. Washington: National Academies Press, 2012.

19 Shojania KG, Grimshaw JM. Evidence-based quality improvement: the state of the science. Health Aff 2005; 24: 138

Fonte:
The Lancet ; 381(9864): 419-421; 2013. DOI: 10.1016/S0140-6736(12)61850-9.
DECS:
Assistência à Saúde/classificação, Melhoria de Qualidade/análise
Nota Geral:

Artigo publicado originalmente pela The Lancet, Volume 381, Issue 9864, Pages 419-421, 2013. doi:10.1016/S0140-6736(12)61850-9

Promotion of improvement as a science

Copyright © 2013 Elsevier Ltd All rights reserved

Este texto foi originalmente escrito em inglês. A The Lancet permitiu a tradução deste artigo e cedeu os direitos de publicação ao Proqualis/Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde/Fiocruz, único responsável pela edição em português. A The Lancet não se responsabiliza pela acurácia das informações e por perdas ou danos decorrentes da utilização desta versão.

A promoção da melhoria como ciência

© Proqualis/Instituto de Comunicação Científica e Tecnológica em Saúde/Fiocruz, 2013

 Creative Commons Atribuição-NãoComercial 3.0 Não Adaptada