Entrevista com a Farmacêutica Tania Azevedo Anacleto

Autor institucional: 
Centro Colaborador para a Qualidade do Cuidado e a Segurança do Paciente
Resumo: 

Tania Azevedo Anacleto é vice-presidente do Instituto de Práticas Seguras no Uso de Medicamentos (ISMP-Brasil)

1. A morte recente de uma criança de menos de dois anos de idade, em Brasília, por injeção inadequada de adrenalina, pode ter sido resultado de um erro na prescrição. Ele poderia ter sido evitado? Qual é a diferença entre Evento Adverso e Erro?

Evento adverso é um conceito mais amplo do que erro de medicação. A reação adversa e os erros de medicação são considerados eventos adversos; entretanto, a possibilidade de prevenção é uma das diferenças marcantes entre estes dois eventos. A reação adversa é inerente ao medicamento, sendo considerada um evento inevitável, ainda que se conheça a sua possibilidade de ocorrência. O erro de medicação é, por definição, prevenível. Exemplificando: as reações adversas gastrointestinais provocadas pelos antiinflamatórios são inevitáveis. Entretanto, a ocorrência de um sangramento gástrico provocado quando este medicamento é utilizado por um paciente com história prévia de úlcera gástrica é considerada erro de medicação.

O ISMP Brasil adota o seguinte conceito para os erros de medicação: “Qualquer evento evitável que, de fato ou potencialmente, pode levar ao uso inadequado de medicamento, enquanto este está sob o controle do profissional de saúde, do paciente ou do cuidador. Os erros podem estar relacionados à prática profissional, aos produtos usados na área da saúde, aos procedimentos e aos sistemas, incluindo a prescrição, os problemas de comunicação, rótulos, embalagens, nomes, preparação, dispensação, distribuição, administração, educação, monitoramento e uso de medicamentos”.

Ressaltamos ainda algumas características dos erros de medicação: eles são multiprofissionais e quase nunca podem ser atribuídos a uma só pessoa, em geral são coletivos, e ocorrem por múltiplas falhas no sistema de utilização dos medicamentos. São multifatoriais e, ao mesmo tempo, envolvem circunstâncias similares. Não são raros o relato de profissionais de saúde, citações na literatura ou reportagens na mídia sobre erros envolvendo as mesmas situações críticas, ou os mesmos medicamentos, ou as mesmas causas, ou os mesmos tipos de falhas no sistema.

2. Quais os erros de prescrição mais comuns?

Os erros de prescrição podem ocorrer por falhas no processo de redação da prescrição, incluindo ilegibilidade, falta de dados importantes para a correta dispensação e administração do medicamento, uso de abreviaturas, zeros, pontos e decimais, falhas na identificação do paciente, dentre outros fatores. Acontecem também durante o processo de decisão, ou seja, a escolha do medicamento a ser utilizado, podendo ocorrer falhas no cálculo das doses (mais frequente na neonatologia e na pediatria), prescrição de dois medicamentos com a mesma finalidade terapêutica sem justificativa clínica para tal, prescrição de medicamento não indicado para o paciente, prescrição de medicamentos sem considerar dados clínicos importantes do paciente, como insuficiência renal e hepática, ou alergias.

3- A culpa pelos erros de medicação pode ser atribuída aos profissionais de saúde? Como esse problema é visto atualmente pelos estudiosos do assunto?

Certamente a abordagem individual, em que há busca por um culpado, não é o caminho para lidar com os erros quando estes acontecem. Especialmente quando o erro é grave, desencadeia-se uma forte pressão para se descobrir o culpado, normalmente representado por um indivíduo. Entretanto, passado o tempo e após a punição do indivíduo, outros assuntos ocupam a pauta do dia e perde-se a oportunidade não só de aprender com o erro que aconteceu, mas também de evitar que aconteça novamente. Deve-se ressaltar que retirar a culpa das pessoas não significa deixar de pedir aos indivíduos que tenham responsabilidade por suas ações.
A abordagem sistêmica dos erros reconhece que os erros ocorrem porque existem falhas no sistema e não por incompetência dos indivíduos. Considera que toda instituição, por melhor que seja, vai conviver com certo grau de erro, que o ser humano erra e que o sistema deve ter defesas para barrar os erros humanos. Neste tipo de abordagem, o erro é analisado de maneira detalhada; todos os fatores relacionados são investigados, levando ao conhecimento das falhas no sistema e proporcionando a oportunidade de corrigir estas falhas e impedir que estes mesmos erros ocorram novamente.

4- Quais as consequências práticas dessa abordagem?

As causas dos erros de medicação perpassam por processos, linhas de responsabilidade e sistemas organizacionais, envolvendo as várias etapas da cadeia de utilização dos medicamentos. Como citado anteriormente, são multifatoriais; portanto, para reduzir e evitar erros é necessário criar múltiplas barreiras de segurança nas várias etapas de utilização do medicamento e nos diversos fatores que contribuem para a ocorrência de tais eventos. É importante ressaltar que, diariamente, muitos erros ocorrem nas instituições de saúde, mas nem todos atingem os pacientes porque são interceptados pelos profissionais de saúde com a ajuda (ou não) dessas barreiras.

Diante do exposto, fica evidenciado que as medidas de prevenção são múltiplas e devem ser adequadas à realidade de cada instituição de saúde, considerando os pontos falhos de cada etapa do processo de trabalho. É fundamental que, em todas as etapas, os profissionais tenham fácil e rápido acesso a informações confiáveis, como, por exemplo, as doses máximas dos medicamentos padronizados na instituição, considerando a faixa etária dos pacientes.

5. A adrenalina é considerada um medicamento perigoso. O que são medicamentos potencialmente perigosos e qual a importância de sua vigilância?

Os medicamentos potencialmente perigosos são aqueles que possuem risco aumentado de provocar danos significativos aos pacientes em decorrência de falha no processo de utilização. Os erros que ocorrem com esses medicamentos podem não ser os mais frequentes; porém, suas consequências tendem a ser mais graves, podendo ocasionar lesões permanentes ou a morte do paciente.

Devido a essas características, é recomendável que estratégias de prevenção sejam adotadas nas instituições de saúde para minimizar a ocorrência de erros. Barreiras devem ser criadas para evitar que falhas no sistema de utilização de medicamentos atinjam os pacientes e causem danos. É fundamental que os profissionais de saúde que trabalham com esses medicamentos conheçam os riscos associados ao uso, as doses máximas, as formas corretas de administração, as concentrações corretas de infusão (no caso de injetáveis), os critérios de monitoramento, dentre outras informações essenciais para o uso seguro dos medicamentos.

A lista de tais medicamentos e as recomendações gerais para prevenção de erros de medicação estão disponíveis no site do Boletim ISMP Brasil (www.boletimismpbrasil.org). Realizando o cadastro neste site, o ISMP Brasil envia gratuita e periodicamente os boletins com informações de risco e prevenção de erros relacionados a esses medicamentos.

6 – Como lidar com os familiares do paciente que sofreu por um erro de medicação? Numa situação ideal, é possível eliminar os erros?

Experiências internacionais mostram que, quando o erro acontece, oferecer acesso à informação e à verdade é fundamental para que os familiares se sintam respeitados e acolhidos neste momento difícil. É comum ouvir queixas de familiares e mesmos dos pacientes da falta de acesso à informação sobre o que aconteceu e o que foi e será feito para minimizar os danos causados pelo erro de medicação. Algumas instituições já trabalham com protocolos de atendimento aos pacientes e familiares envolvidos neste tipo de evento.

Para terminar, aproprio-me de uma citação do artigo “Erros de medicação: quem foi?”, dos doutores Mário Borges Rosa e Edson Perini: “O caráter prevenível, intrínseco aos erros de medicação, é intrigante: poderá o homem, algum dia, evitar todos os erros ou obter o chamado erro zero ou a perfeição? A condição humana, notadamente falível, não pode pretender isso; entretanto, é preciso ter humildade e sabedoria para aprender com os erros cometidos e usar este conhecimento para melhorar a assistência prestada aos pacientes”.

Idioma do conteúdo: 
Data de publicação: 
2013