Serviços de atenção materna e neonatal: segurança e qualidade

Autor institucional: 
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)
Resumo: 

Em todo o mundo, a questão da segurança do paciente vem se tornando parte fundamental dos processos relacionados à melhoria da qualidade assistencial. Pode-se dizer que tal movimento teve início há mais de duas décadas após a publicação dos resultados de um estudo realizado nos Estados Unidos, mais precisamente no Estado de Nova Iorque. O Harvard Medical Practice Study, como denominado na época, examinou uma amostra aleatória de 30.000 prontuários de pacientes internados em hospitais naquele Estado no ano de 1984. Os resultados demonstraram que 3,7% dos pacientes hospitalizados sofreram algum evento adverso, definido como lesões causadas por tratamento médico, e não como consequência do processo patológico. Destas lesões, 14% foram fatais e 27,6% dos eventos foram classificados como decorrentes de negligência. Baseado nos resultados do estudo, os autores estimaram que, no ano de 1984, cerca de 99.000 pacientes sofreram algum tipo de evento adverso em todo o Estado de Nova Iorque (BRENNAN, 1991; LEAPE, 1991).

Após os achados de que uma parte substancial desses eventos foram provocados por erros no processo assistencial, iniciou-se uma busca por métodos e processos que pudessem reduzir tais erros. O conhecimento de que na indústria de aviação e de energia nuclear o redesenho de sistemas operacionais havia resultado em uma redução significativa dos erros serviu de inspiração para os sistemas de saúde (LEAPE, 1994). Posteriormente, vários outros estudos foram publicados na literatura internacional demonstrando a eficácia da implantação de sistemas de segurança do paciente em instituições de saúde. O envolvimento oficial, entretanto, só se tornou uma realidade após a publicação do relatório Errar é Humano do IOM (Institute Of Medicine) proclamando que erros no processo assistencial causavam a morte evitável de 44.000 a 98.000 pessoas por ano nos Estados Unidos. O relatório também apontou que os erros não foram provocados por médicos ou enfermeiras descuidados mas por deficiência dos sistemas, estabelecendo que as lesões preveníveis poderiam ser reduzidas em 90% através da correção desses sistemas (KOHN, 2000).

Com a repercussão que a divulgação do relatório provocou, principalmente na mídia, outros governos e organizações internacionais se mobilizaram no sentido de apoiar estratégias destinadas a prevenir e evitar falhas nos sistemas de assistência à saúde (BRASIL, 2013a).

No Brasil, o tema está na agenda, sendo um dos países que compõem a Aliança Mundial para a Segurança do Paciente, estabelecida pela Organização Mundial da Saúde em 2004. O principal propósito dessa aliança é instituir medidas que aumentem a segurança do paciente e a qualidade dos serviços de saúde, fomentado pelo comprometimento político dos Estados signatários. A ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em parceria com a OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde) e também a SAS (Secretaria de Assistência à Saúde) do Ministério da Saúde vêm trabalhando no Brasil com os Desafios Globais para a Segurança do Paciente previstos na Aliança Mundial para a Segurança do Paciente (BRASIL, 2013a) e, mais recentemente, o Ministério da Saúde, através da Portaria 529, de 10  de abril de 2013, instituiu o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). Entre as determinações da portaria está a criação do Comitê de Implementação do Programa Nacional de Segurança do Paciente (CIPNSP) com a participação de órgãos e entidades da área de saúde, além de instituições de ensino e pesquisa da área de segurança do paciente. A coordenação do Comitê está a cargo da ANVISA (BRASIL, 2013b). Na esteira da portaria, a ANVISA publicou a RDC (Resolução da Diretoria Colegiada) 36, de 25 de julho de 2013, instituindo ações para a segurança do paciente em serviços de saúde. Entre as ações instituídas pela resolução está a criação de núcleos de segurança do paciente (NSP) nos serviços de saúde com o intuito de promover e apoiar a implementação de ações voltadas à segurança do paciente (BRASIL, 2013c).

A Segurança Sanitária na Assistência Materna e Neonatal se reveste de fundamental importância tendo em vista o número de pacientes envolvidos e o potencial de eventos adversos que podem surgir no processo assistencial. Afinal, são aproximadamente 3 milhões de nascimentos que acontecem no Brasil a cada ano, significando quase 6 milhões de pacientes, ou seja as parturientes e os seus filhos ou filhas (BRASIL, 2011). Importante também é o fato de que cerca de 98% dos partos acontecem em estabelecimentos hospitalares,sejam públicos ou privados (BRASIL, 2008). Também, os procedimentos relacionados à assistência obstétrica representam a terceira causa de internação hospitalar no SUS (BRASIL, 2012a) e as internações por afecções originária no período perinatal totalizaram 218.418 no ano de 2012 (BRASIL, 2012b). Segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde – CNES do DATASUS1, existem no Brasil 30.110 leitos de atenção obstétrica cirúrgica e 27.220 de atenção obstétrica clínica, totalizando 57.330 leitos. Em termos de internação neonatal, existem 15.600 leitos.

Além da assistência hospitalar, a assistência materna e neonatal se dá também na comunidade, com ações educativas para gestantes, puérperas e suas famílias, apoio ao aleitamento materno, apoio nutricional, imunização, serviço de apoio social etc. Outros serviços assistenciais tais como pré-natal, assistência à puérpera e ao recém-nascido são realizados no nível primário de assistência, seja em unidades básicas de saúde, assim como em ambulatórios localizados em unidades mistas, hospitais ou maternidades. Com a criação da Rede Cegonha, outros espaços assistenciais passam a se somar aos já existentes tais como as casas de gestantes, bebês e puérperas (CGBP) e os centros de parto normalperi e intra-hospitalares (BRASIL, 2013d, e).

Além dos números, o processo e a natureza do trabalho na assistência materna e neonatal apresenta outras peculiaridades tais como o grande uso de força de trabalho humano, com várias configurações de equipes, envolvendo médicos, enfermeiros e outros profissionais, que exige intensiva vigilância para a não ocorrência de erros, além de efetiva comunicação entre diversas disciplinas. Com esses números, a diversidade de locais de assistência e profissionais envolvidos faz da atenção materna e neonatal uma das áreas prioritárias para ações voltadas à segurança do paciente (SCARROW, 2009).

Embora a gravidez e o nascimento, na maioria das vezes, ocorram sem intercorrências para a mãe e/ou seu filho ou filha, sabe-se que em muitos casos podem surgir complicações, desde as mais simples até as mais graves que podem ameaçar as suas vidas. Tais complicações, em sua maioria, têm a sua origem tanto no próprio processo de gravidez e parto como por condições clínicas preexistentes. Em outras situações entretanto, elas podem surgir em decorrência da própria assistência oferecida, seja em relação à estrutura dos locais de nascimento, assim como em consequência de erros no processo de trabalho. Adicionalmente, o modelo obstétrico contemporâneo, principalmente no Brasil, expõe as mulheres e recém-nascidos a altas taxas de intervenções com grande potencial de provocar danos. Tais intervenções, como a episiotomia, o uso de ocitocina e a cesariana, além de outras, que deveriam ser utilizadas de forma parcimoniosa apenas em situações de necessidade, hoje são rotineiras e atingem quase a totalidade das mulheres que dão à luz em hospitais no país (GOMES, 2011; FOGAÇA, 2007). Mesmo nas situações onde as complicações já existam, uma assistência inadequada não é capaz de reduzir os agravos delas resultantes, além de potencializá-los resultando, muitas vezes, na morte evitável de mulheres e crianças ou em lesões e sequelas permanentes (ROBERTS, 2009; RONSMANS, 2006; DRAYCOTT, 2011).

Ademais, a assistência materna e neonatal se reveste de um caráter particular que vai além do processo de adoecer e morrer. Quando as mulheres engravidam e buscam assistência, além da preocupação sobre a sua saúde e a do seu filho ou filha, estão também à procura de uma compreensão mais ampla e abrangente da sua situação pois, para elas e suas famílias, o momento da gravidez, e do parto em especial, é único na vida e carregado de fortes emoções. A experiência vivida por eles nesse momento pode deixar marcas indeléveis, positivas ou negativas, para o resto das suas vidas. Portanto, a preocupação com a segurança deve incluir também os aspectos emocionais, humanos, culturais e sociais envolvidos nesse momento tão ímpar para as mulheres e suas famílias. Uma visão dicotômica desse processo, onde a busca por uma experiência positiva no parto significaria negligenciar a segurança, é inadequada. Na atenção materna e neonatal deve prevalecer uma concepção multidimensional onde, tanto os eventos adversos que comprometem a estrutura ou função do corpo, como lesões, incapacidade ou disfunção ou mesmo a morte, assim como o sofrimento social, psicológico, moral e cultural devem ser enquadrados na categoria de danos ao paciente.

Nesse contexto, as estratégias destinadas à melhoria da qualidade e segurança na assistência materna e neonatal devem incluir todas aquelas voltadas à assistência aos pacientes em geral assim como estratégias específicas para esse grupo. Dentre essas estratégias se destacam: treinamento individual e em equipe dos provedores de cuidado; simulações; desenvolvimento de protocolos, diretrizes e listas de checagem; uso da tecnologia da informação; educação e rondas de segurança. Essas atividades e ferramentas podem ser utilizadas tanto em nível hospitalar quanto ambulatorial (ENNEN, 2013; SCARROW, 2009).

Com o intuito de promover uma atenção obstétrica e neonatal de qualidade que reduza os agravos resultantes do próprio processo reprodutivo e minimize os danos relacionados ao processo assistencial, além de contribuir para uma assistência que tenha como focos principais a segurança e a humanização, a vigilância sanitária brasileira traz para si um grande desafio. Através do processo normativo e das ações de fiscalização e orientação dos serviços, pode contribuir sobremaneira para os esforços governamentais de redução da mortalidade e morbidade materna e neonatal no país, além da redução dos danos físicos ou psicológicos resultantes dos erros e práticas inadequadas dos serviços assistenciais.

Com tais objetivos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) como coordenadora do Sistema Nacional de Vigilancia Sanitária (SNVS) vem elaborar esse documento sobre Segurança Sanitária em Atenção Materna e Neonatal voltado para o fortalecimento dos serviços de saúde onde essa assistência se realiza. O mesmo vem ao encontro das necessidades dos gestores, fiscais de vigilância sanitária e profissionais envolvidos na assistência, contribuindo para o aperfeiçoamento do cuidado, aumentando a segurança dos pacientes e a qualidade dos serviços. As orientações nele contidas devem servir de base e orientação para a construção e reforma de unidades de atenção materna e neonatal além de guia para a organização e estruturação dos serviços. Também servirá de apoio e referência para a construção de sistemas de segurança do paciente nessas unidades com vistas à redução de erros e danos inerentes ao processo assistencial.

Referências

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BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria 904, de 29 de maio de 2013d. Estabelece diretrizes para implantação e habilitação de Centro de Parto Normal (CPN), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), para o atendimento à mulher e ao recém-nascido no momento do parto e do nascimento, em conformidade com o Componente PARTO E NASCIMENTO da Rede Cegonha, e dispõe sobre os respectivos incentivos financeiros de investimento, custeio e custeio mensal. Diário Oficial da União n. 103, seção 1, p.68, 31/05/13.

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ISBN: 
978-85-88233-45-4
Data de publicação: 
2015
Páginas: 
103
Idioma do conteúdo: 
Cidade de publicação: 
Brasília