Da Segurança I à Segurança II: um relatório
A publicação do relatório To Err is Human (Errar é humano) do IOM, em 2000, catalisou um interesse crescente pela melhoria de qualidade no cuidado de saúde. Ainda assim, apesar de décadas de atenção, atividade e investimento, as melhorias têm sido terrivelmente lentas. Embora as taxas de danos pareçam estáveis, o aumento na demanda por serviços de saúde e a crescente intensidade e complexidade desses serviços (as pessoas vivem cada vez mais, com comorbidades mais complexas, e esperam obter um cuidado mais avançado e de mais alto nível) implicam que o número de pacientes que sofrem danos durante o cuidado de saúde só vai aumentar, a menos que encontremos formas novas e mais eficazes de melhorar a segurança.
A maior parte das pessoas pensa na segurança como a ausência de acidentes e incidentes (ou como um nível de risco aceitável). Por essa perspectiva, que chamamos de Segurança I, a segurança é definida como um estado no qual o menor número possível de coisas dá errado. A abordagem da Segurança I presume que as coisas dão errado devido a falhas ou disfunções identificáveis em componentes específicos: tecnologia, procedimentos, trabalhadores e as organizações nas quais estão inseridos. Os seres humanos — sozinhos ou coletivamente — são, portanto, vistos como um risco ou perigo, principalmente porque são o mais variável desses componentes. O propósito da investigação de acidentes na Segurança I é identificar as causas e os fatores que contribuem para resultados negativos, e a avaliação de risco procura determinar sua probabilidade. O princípio da gestão da segurança é o de responder quando algo acontece ou quando algo é categorizado como um risco inaceitável, normalmente tentando eliminar suas causas ou melhorar as barreiras para impedi-los, ou ambos.
Essa visão da segurança popularizou-se em setores nos quais a segurança é um elemento crucial (nuclear, aviação etc.) entre as décadas de 1960 e 1980. Naquela época, a demanda por desempenho era significativamente menor que hoje e os sistemas eram mais simples e menos interdependentes.
Existia o pressuposto tácito de que os sistemas podiam ser decompostos e que os componentes de um sistema funcionavam de modo bimodal — isto é, seu funcionamento era correto ou incorreto. Esses pressupostos levaram à descrição detalhada e estável de sistemas, o que permitia buscar as causas dos defeitos e corrigi-los. Porém, tais pressupostos já não são válidos no mundo atual, nem na indústria nem no cuidado de saúde. No setor da saúde, sistemas como a terapia intensiva ou os serviços de emergência não podem ser decompostos de forma significativa e as funções não são bimodais, nem quando consideradas em detalhe, nem no sistema como um todo. Pelo contrário, o trabalho clínico cotidiano é, e deve ser, variável e flexível.
É fundamental observar que a visão da Segurança I não considera por que o desempenho humano praticamente sempre dá certo. As coisas não dão certo porque as pessoas agem como deveriam, mas porque as pessoas são capazes de ajustar, e efetivamente ajustam, aquilo que fazem, conforme as condições de trabalho. Com o desenvolvimento e o aumento da complexidade dos sistemas, esses ajustes tornam-se cada vez mais importantes para manter um desempenho aceitável. Dessa forma, o desafio para a melhoria da segurança consiste em compreender esses ajustes. Em outras palavras, compreender por que o desempenho geralmente dá certo, apesar das incertezas, ambiguidades e objetivos conflitantes que permeiam as situações de trabalho complexas. Apesar da importância óbvia de fazer com que as coisas deem certo, a gestão da segurança tradicional presta pouca atenção a isso.
A gestão da segurança deve, portanto, deixar de tentar assegurar que "o menor número possível de coisas dê errado" e passar a assegurar que "o maior número possível de coisas dê certo". Chamamos essa perspectiva de Segurança II. Ela está relacionada à capacidade de um sistema de funcionar corretamente sob condições variáveis. A abordagem da Segurança II presume que a variabilidade no desempenho cotidiano proporciona as adaptações necessárias para responder a condições variáveis, sendo, portanto, a razão pela qual as coisas dão certo. As pessoas são vistas, consequentemente, como um recurso necessário para a flexibilidade e a resiliência do sistema. Na Segurança II, o propósito da investigação passa a ser compreender por que as coisas normalmente dão certo, pois esta é a base para explicar por que as coisas às vezes dão errado. A avaliação de riscos procura compreender as condições nas quais a variabilidade no desempenho pode se tornar difícil ou impossível de monitorar e controlar. O princípio da gestão da segurança é facilitar o trabalho cotidiano, prever desenvolvimentos e eventos e manter a capacidade de adaptação para responder com eficácia às surpresas inevitáveis (Finkel, 2011).
Tendo em conta o aumento da demanda e da complexidade dos sistemas, devemos ajustar a nossa abordagem diante da segurança. Embora muitos eventos adversos ainda possam ser tratados pela abordagem da Segurança I sem consequências sérias, existe um número crescente de casos nos quais essa abordagem não funcionará, deixando-nos sem saber de que forma as ações cotidianas nos permitem atingir a segurança. Isso pode ter consequências inesperadas, pois degrada involuntariamente os recursos e os procedimentos necessários para fazer com que as coisas deem certo.
Portanto, o caminho a seguir depende da combinação das duas mentalidades. Embora possamos continuar a utilizar muitos dos métodos e técnicas existentes, a assimilação da visão da Segurança II também exigirá novas práticas, baseadas em examinar aquilo que dá certo, pôr o foco nos eventos frequentes, manter a sensibilidade para a possibilidade de falhas, encontrar um bom equilíbrio entre meticulosidade e eficiência e considerar o investimento em segurança como um investimento em produtividade. Este artigo ajuda a explicar as principais diferenças entre as duas formas de encarar a segurança e suas implicações.
Leia o relatório completo no PDF ao lado que pode ser encontrado no original, em inglês, e em português.