Conciliação medicamentosa: estratégia para evitar erros de medicação e aumentar a segurança do paciente

Autor pessoal
BREVES, I.
Resumo

Por Isis Breves | Publicado em 09 de novembro de 2015

A conciliação medicamentosa é uma atividade descrita pelos manuais de acreditação hospitalar com o objetivo de aumentar a segurança do paciente. É um processo que consiste na obtenção de uma lista completa e precisa dos medicamentos de uso habitual do paciente e posterior comparação com a prescrição em todas as transições de cuidado (admissão, alta hospitalar ou transferência entre unidades de internação). Quando discrepâncias são encontradas, elas podem ser consideradas erros de medicação. Para falar sobre o tema, o Proqualis entrevistou os docentes e pesquisadores do Observatório de Vigilância e Uso de Medicamentos da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): Guacira Côrrea de Matos, César Augusto Antunes Teixeira e Elisangela da Costa Lima Dellamora. Participou também da entrevista a farmacêutica e aluna da Residência Multiprofissional Integrada em Saúde do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) da UFRJ, Carolina Silva Maia Vieira de Miranda.

Os entrevistados são participantes de um projeto de conciliação medicamentosa, uma experiência de extensão da Faculdade de Farmácia, em parceria com o HUCFF e o Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG), ambos do complexo hospitalar da UFRJ. As atividades do estudo tiveram início em 2012.

Qual é a importância da conciliação medicamentosa no contexto da segurança do paciente?

Guacira:  Uma importante causa de erros de medicação em hospitais é decorrente da imprecisão de informações durante as transições de nível de cuidado, nas quais alguns medicamentos são suspensos, outros são introduzidos ou prescrições anteriores são transcritas. As discrepâncias podem ser justificadas pela situação clínica ou não justificadas e estas últimas são consideradas erros de medicação. As discrepâncias não justificadas, por omissão, duplicação, erros de doses ou potenciais interações, podem resultar em danos adicionais e evitáveis aos pacientes, devido à inadequação do tratamento e à ocorrência de efeitos adversos. Isso é especialmente relevante para subgrupos de pacientes com risco elevado, como os idosos, os polimedicados e os que apresentam comorbidades. A conciliação medicamentosa é uma prática que objetiva a harmonização dos planos terapêuticos dos pacientes, desde a admissão até a alta, incluindo todas as mudanças de nível assistencial, e é considerada uma ferramenta estratégica para a segurança do paciente pelos principais programas de qualidade em saúde.  

Quais os dados da magnitude do problema?

Guacira: Discrepâncias de prescrição não justificadas são frequentes. Elas ocorrem em mais de 70% das internações e em todas as etapas, sendo 22% dos casos na admissão, 12% na alta e 66% em outras transições assistenciais, como nas transferências internas e no pós-operatório, com troca de responsabilidade pelo paciente e modificações do tratamento. Cerca de 1/3 delas tem potencial de causar dano ao paciente. Uma revisão sistemática de 26 ensaios controlados sobre práticas de conciliação de medicamentos em hospitais, realizados em países da América do Norte, Europa e Oceania, estimou que as intervenções realizadas se mostraram efetivas para reduzir discrepâncias e potenciais eventos adversos. A Organização Mundial da Saúde estabeleceu um protocolo operacional padronizado para prevenir erros de medicação decorrentes de informações incompletas ou incorretas durante as transições de cuidado. Conciliação pode ser definida como um processo formal e protocolizado de criação e manutenção de lista acurada e o mais completa possível dos medicamentos em uso por um paciente – incluindo nome, dose, frequência e via de administração – e adoção  desta lista para orientar a terapêutica.

Diante de todos os processos/atividades envolvidos com a correta prescrição e administração de medicamentos, por que o grupo escolheu estudar a conciliação medicamentosa? 

Guacira: Apesar de não ser uma atividade privativa do farmacêutico, seu conhecimento específico sobre medicamentos e terapêutica contribui para a obtenção de informações acuradas e detalhadas sobre o histórico medicamentoso e as alterações de esquema terapêutico dos pacientes. Exemplificando, na revisão sistemática de Mueller et al. (2012), mais de 50% dos estudos (15/26) tratavam de intervenções realizadas por farmacêuticos. Isso posiciona de forma importante a conciliação medicamentosa no conjunto de atividades em Farmácia Clínica. Assim, a partir do que informa a literatura e da percepção da equipe docente, a conciliação foi identificada como uma estratégia inicial oportuna para o conjunto das atividades relacionadas à segurança do paciente, considerando a relativa simplicidade operacional e exequibilidade no contexto assistencial dos hospitais da UFRJ. Ademais, tem como vantagem adicional oferecer campo de ensino e treinamento de práticas relevantes e inovadoras para os alunos da graduação e da pós-graduação e para os profissionais de saúde.

No Brasil, estudos nesta área ainda são escassos. Qual a contribuição dessa pesquisa para a realidade brasileira na área?

Guacira: Nossas atividades foram iniciadas em 2012, no âmbito de um projeto de extensão da Faculdade de Farmácia, em parceria com o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho e o Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, ambos do complexo hospitalar da UFRJ. As informações coletadas em banco de dados específico, desde o início do projeto, subsidiam análises periódicas. Estas, além de orientar a dinâmica de desenvolvimento das ações extensionistas, permitem gerar resultados de pesquisa que originaram, até agora, dois trabalhos de conclusão de curso de graduação já finalizados e dois trabalhos de conclusão de residência, ainda em andamento. Além disso, fomos premiados com menção honrosa no IX Congresso de Extensão da UFRJ em 2012 e como melhor trabalho de graduação do IV Simpósio de Pesquisa, Ensino e Extensão da FF/UFRJ. Em 2014, apresentamos a experiência no V Congresso Brasileiro de Uso Racional de Medicamentos, promovido pelo Ministério da Saúde e pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Atualmente, estamos em fase de consolidação dos dados para fins de publicação em periódicos científicos. Dessa forma, acreditamos que os resultados de pesquisa do projeto, atuais e futuros, podem contribuir para o fortalecimento das evidências, com dados nacionais, dos benefícios e da relevância da conciliação medicamentosa realizada pelo farmacêutico, para o incremento da segurança do paciente hospitalizado.

Como está estruturado o projeto?

Cesár e Carolina: No HUCFF, as atividades são realizadas em 9 enfermarias da Clínica Médica, com um total de 43 leitos, incluindo uma enfermaria geriátrica, com 5 leitos. A rotina de trabalho começa com a extração de dados do prontuário, seguida de entrevista com o paciente e/ou acompanhante, para obter as informações mais completas possíveis sobre o uso prévio de medicamentos. Na etapa seguinte, é feita a análise das discrepâncias encontradas e as intervenções necessárias são identificadas e discutidas com a equipe médica ou de enfermagem. Além da conciliação na admissão, para os pacientes da enfermaria geriátrica, são realizados a conciliação na alta e o acompanhamento farmacoterapêutico, que tem foco na busca ativa de eventos adversos a medicamentos (EAM) e interações medicamentosas potenciais (IMP).  Os farmacêuticos participam de reuniões multiprofissionais (rounds), durante as quais são discutidas as intervenções propostas. Durante as conciliações de alta, os pacientes e os cuidadores recebem orientações e material educativo sobre a prescrição de uso domiciliar.

Elisangela: No IPPMG, a atividade de conciliação está integrada ao acompanhamento farmacoterapêutico na Unidade de Terapia Intensiva pediátrica, que atualmente possui 11 leitos (6 pediátricos, 1 isolamento e 4 neonatais cirúrgicos). As atividades incluem visita diária ao setor, acompanhamento, conciliação na admissão e intervenção farmacêutica nos rounds.

Guacira: As informações de interesse, referentes à internação, ao paciente e ao tratamento, são registradas em formulário desenvolvido para a atividade. Em seguida, os medicamentos são classificados de acordo com a Classificação Anatômica Terapêutica e Química (ATC), indicada pela Organização Mundial da Saúde. As discrepâncias detectadas são classificadas quanto à justificativa e ao potencial de dano, com base em taxonomias validadas. A análise da adequação da farmacoterapêutica, para subsidiar as propostas de intervenção, considera a lista de medicamentos essenciais dos hospitais, bem como fontes bibliográficas de apoio idôneas, incluindo bases eletrônicas, como o Micromedex®.

É importante destacar que, durante o primeiro ano do projeto, considerado fase piloto, foram realizados seminários internos para capacitação e treinamento da equipe, conduzido pelos docentes coordenadores. Ainda nessa etapa, foi elaborado um modelo inicial de formulário de coleta de dados, o qual foi revisto e adequado sucessivas vezes, com a participação dos alunos, até ser considerado adequado aos objetivos propostos. Também foram elaborados protocolos para orientação e padronização dos procedimentos de coleta de dados pela equipe.

Guacira, Cesar e Elisangela: Desde o início, em 2012, participaram do projeto 32 alunos de graduação de Farmácia (4 destes com bolsa de extensão), 4 farmacêuticos dos serviços envolvidos, 20 residentes farmacêuticos da residência multiprofissional e 4 docentes da FF.

Quais são os desafios para implementação de um projeto de conciliação medicamentosa?

Guacira, Cesár Augusto, Elisangela e Carolina: Algumas dificuldades enfrentadas no âmbito deste projeto são  desafios permanentes de superação, que acreditamos serem comuns a todos que se dispõem a implantar a conciliação medicamentosa em hospitais. Uma dessas dificuldades é a incompletude dos registros de prontuário, que leva à necessidade de buscar informações adicionais diretamente com a equipe assistencial e com o paciente.

No caso do setor de Clínica Médica do HUCFF, outra limitação é a elevada rotatividade de pacientes nas enfermarias, com internações de curta duração, o que dificulta a cobertura de todos os casos nas conciliações de admissão e de alta. Outro desafio é a sensibilização da equipe de saúde. Neste aspecto, a constância e a continuidade do serviço são fatores catalisadores das relações de confiança, que consolidam a inserção do farmacêutico na equipe.

Nas conciliações de alta, a maior limitação é conhecer previamente a previsão e a prescrição de alta, demandando uma articulação multiprofissional mais efetiva. Trata-se de uma atividade complexa, na qual a elaboração de orientações personalizadas sobre a farmacoterapia de uso domiciliar consome tempo e requer soluções criativas, adequadas aos diferentes perfis de pacientes. Para contornar tais problemas, é importante estabelecer critérios de prioridade, levando em conta o grau de risco do paciente, segundo a idade, as comorbidades e a polimedicação. Entretanto, quase todos os pacientes internados na Clínica Médica, dado o perfil assistencial da unidade, estão enquadrados em um ou mais destes critérios. Isso ajuda a explicar a dificuldade de oferecermos a mesma cobertura de conciliação na alta que oferecemos para a admissão.

Outro importante desafio é a ampliação das ações para outros setores que recebem pacientes com risco elevado, como a Cardiologia e a UTI, o que envolve a necessidade de ampliação da equipe farmacêutica que executa a conciliação e a sensibilização da equipe médica e de enfermagem.

No início do projeto, a falta de espaço para a realização da atividade e de computadores disponíveis para a consulta da prescrição eletrônica e das bases de dados informatizados no instituto pediátrico também dificultaram as atividades. No entanto, os resultados do projeto e a melhora na integração da equipe multiprofissional sensibilizaram os gestores da unidade, aumentando o apoio e a melhoria na estrutura. 

Quais são os resultados até o presente momento?

Guacira, Cesár Augusto, Elisangela e Carolina: “Embora o banco de dados ainda esteja em fase de consolidação e análise, alguns resultados prévios podem ser apresentados. Os principais indicadores acompanhados são de duas categorias: cobertura (pacientes com conciliação realizada/ total de pacientes internados) e de segurança (pacientes com pelo menos 1 discrepância na prescrição/total de pacientes revisados; erros de conciliação/total de pacientes revisados; pacientes com erros graves/total de pacientes revisados). Desde a implantação da atividade, em maio de 2012, houve 1506 internações nas enfermarias da Clínica Médica do HUCFF incluídas no projeto. A conciliação de admissão foi concluída em 1153 admissões e os motivos de não conclusão em 353 casos foram a alta, o óbito ou a transferência antes da realização da conciliação. A idade dos internados variou entre 16 e 93 anos, com mediana de 64 anos, e a distribuição por sexo foi equilibrada, com pequena predominância de mulheres (53%). Foram prescritos uma média de 6,6 medicamentos/paciente (0 a 19). Foi detectada pelo menos 1 discrepância em 86% das prescrições, com média de 3 discrepâncias.  Comparando os medicamentos de uso prévio com os prescritos após a admissão hospitalar, foram encontradas discrepâncias em 43% dos casos, sendo 13% destas não justificadas, caracterizando erros de conciliação, predominantemente por omissão. Mais de 20% das discrepâncias detectadas envolveram anti-hipertensivos.

No IPPMG, até outubro de 2015, foram acompanhadas 260 crianças, com média de 14 medicamentos por prescrição. O principal motivo da internação (40%) foi infecção no trato respiratório e 65% das crianças tinham até dois anos de idade. Foram identificadas discrepâncias não justificadas em 5% das prescrições. A maior parte relacionou-se à inadequação da forma farmacêutica prescrita e a interações medicamentosas potenciais.

Por fim, a equipe disponibilizou uma lista de referências que basearam seus estudos e suas respostas para esta entrevista.

Referências

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