Casos e comentários
Comentários de Elizabeth Manias, PhD, RN, MPharm
O Caso
Uma mulher de 40 anos de idade, sem plano de saúde e portadora de ansiedade ficou sem seu medicamento prescrito, clonazepam, e teve uma convulsão. Foi atendida no setor de emergência, onde foi medicada, mas teve outra convulsão antes de receber alta. O médico do setor de emergência examinou a paciente e planejou lhe dar alta após a administração de uma dose de fenitoína (outro medicamento anticonvulsivante) por via intravenosa (IV), supondo que ela estivesse bem e com sinais vitais estáveis.
A prescrição da medicação foi corretamente redigida no prontuário eletrônico para administração de 800 mg de fenitoína por via intravenosa. As máquinas de dispensação de medicamentos forneciam fenitoína em frascos de 250 mg/1 mL. Portanto, a dose correta exigiria quatro frascos, totalizando 3,2 mL, para diluição em uma bolsa pequena de solução para infusão IV. O enfermeiro fez uma leitura errada das instruções, como sendo 8.000 mg (8 g), e administrou esta dose ao paciente, o que resultou em uma overdose de 10 vezes a prescrita e de 2 a 3 vezes a dose letal. A paciente faleceu alguns minutos após a infusão.
O erro foi detectado durante a fase de código azul. Os enfermeiros que responderam ao chamado notaram as dezenas de frascos e a bolsa de solução para infusão IV com anotações indicando a medicação e a dose. Uma auditoria do sistema de farmácia revelou que o enfermeiro havia pegado 32 frascos de três máquinas de dispensação farmacêutica diferentes para chegar a 8 g de fenitoína IV. Além disso, o enfermeiro teve que usar duas bolsas de solução IV e uma linha de infusão secundária para administrar uma dose tão grande. Havia, a pouco mais de trinta metros do posto de enfermagem da emergência, vários médicos da emergência, alguns enfermeiros e uma farmácia com um doutor em farmácia de plantão. O enfermeiro não pediu a ninguém para verificar seus cálculos, nem ninguém percebeu ou comentou nada enquanto ele perambulava pela unidade recolhendo os frascos necessários para a dose.
Comentários
Os pacientes que dão entrada no setor de emergência são altamente vulneráveis à má gestão de medicamentos por causa da natureza não programada de sua admissão e a urgência e gravidade do seu estado. Os setores de emergência são ambientes pressionados pelo tempo, em que decisões são frequentemente tomadas de forma rápida com base em informações clínicas limitadas e os profissionais de saúde devem prestar cuidados a um número ilimitado de pessoas que procuram tratamento urgente. Assim, os erros de medicação são recorrentes nesse setor, variando de cerca de 5,4 a 16,1 erros de medicação para cada 100 prescrições. (1,2)
Neste caso, o enfermeiro cometeu uma série de erros cognitivos que contribuíram para uma overdose de fenitoína de 10 vezes a prescrita. Ele não reconheceu que não era comum usar 32 frascos de fenitoína para obter a dose necessária. Não percebeu que era raro precisar de duas bolsas de solução IV para administração de uma única dose de fenitoína e também não verificou novamente a medicação IV com outro profissional de saúde. Mais importante, ele parecia não conhecer a dose tóxica do medicamento que estava administrando.
Há uma série de coisas que enfermeiros e outros profissionais de saúde podem fazer para evitar erros de medicação. Se os profissionais de saúde que lidam diretamente com o paciente não possuírem conhecimento sobre um determinado medicamento, devem verificar os recursos antes de administrar a medicação. Os enfermeiros também devem assegurar-se de que todos os aspectos da prescrição de cada medicação estão claramente documentados antes de administrar a medicação. Estes aspectos incluem: o nome genérico do medicamento, a dose, as orientações e a duração da terapia.
Além dessas normas rigorosas, enfermeiros e outros profissionais de saúde que lidam diretamente com o paciente devem se capacitar para saber identificar certos sinais de alerta de potenciais erros de medicação. Por exemplo, não poder se concentrar na atividade de medicação, se distrair com interrupções constantes, ter uma carga de trabalho não gerenciável e trabalhar com alta proporção de profissionais de saúde inexperientes são fatores de risco que levam a erros de medicação. Os profissionais de saúde também precisam conhecer os medicamentos de alto risco, que podem ocasionar consequências catastróficas em caso de erros. Listas de medicamentos de alto risco estão prontamente disponíveis como fonte de referência para os profissionais de saúde que lidam diretamente com o paciente. (3) A fenitoína IV é um exemplo de medicamento de alto risco que tem uma janela estreita entre a dose terapêutica e a dose tóxica.
A dupla checagem pode ajudar a reduzir os erros de administração. No entanto, para ser eficaz, ela deve ser realizada de maneira independente por dois profissionais de saúde antes da administração da medicação. (4) Por exemplo, para uma medicação que exige um cálculo da dose, cada profissional de saúde tem de seguir de forma independente uma série de passos para calcular a dose necessária. Esta abordagem pode evitar a ocorrência de viés quando um profissional de saúde aceita e concorda às cegas com o resultado obtido por outro profissional em relação à dose necessária.
Os profissionais de saúde que lidam diretamente com o paciente também precisam estar cientes das características de segurança dos sistemas automatizados de dispensação farmacêutica. (5,6) Esses sistemas podem ser programados para alertar os profissionais quando várias máquinas são acessadas para a mesma medicação e o mesmo paciente. É também possível programar as máquinas para impedir a seleção de medicação para um paciente em mais de uma máquina. Além disso, deverão ser impostos limites para a quantidade de frascos que podem ser retirados de uma única máquina de dispensação. Neste caso, o limite para a fenitoína devia ter sido quatro frascos. Se um enfermeiro decidir que quantidades maiores devem ser retiradas, um alerta deve levá-lo a rever a prescrição original. Há também maneiras de programar verificações adicionais para dispensar solicitações relacionadas a doses anormalmente elevadas. Para todas as infusões IV, especialmente aquelas que envolvem medicamentos de alto risco, tais como a fenitoína IV, o farmacêutico deve fornecer instruções na tela do sistema de dispensação. Tais instruções devem incluir informações explícitas sobre o modo de preparo da quantidade correta da medicação a ser adicionada à bolsa de solução para infusão. Além disso, o sistema deve ser programado de modo que só seja possível retirar os medicamentos de uma máquina quando ela está no “modo perfil farmácia”, no qual a prescrição foi verificada por um farmacêutico.
Muitas das etapas e técnicas descritas acima enquadram-se no campo da engenharia de segurança de medicamentos (7), que pode ajudar a identificar os pontos fortes e fracos, físicos e mentais dos profissionais de saúde que lidam diretamente com o paciente e como eles afetam ou não a ocorrência de um erro de medicação. Infelizmente, a engenharia de segurança de medicamentos tem limites. Diariamente, profissionais de saúde bem-intencionados realizam suas atividades de medicação em ambientes configurados para falhar. Os erros de medicação não ocorrem porque um profissional de saúde foi incompetente ao cometer um erro, mas porque este único ato é o último passo de uma sequência de falhas.
É impossível pensar em todas as maneiras em que um profissional de saúde conclui uma tarefa bem-intencionada, porém fatalmente falha. No entanto, fatores específicos podem influenciar o risco de dano ao paciente a partir de erros de medicação. Esses fatores incluem fadiga, horas e carga de trabalho pesadas e estressantes, atuação de equipe deficiente e estilos de liderança e de comunicação negativos. Fadiga decorrente da privação do sono, turnos noturnos e rotatividade dos turnos podem afetar o desempenho, o julgamento e os tempos de reação da equipe. Horas de trabalho e cargas de trabalho excessivas podem levar à síndrome do esgotamento profissional (burnout) e à falta de motivação e de concentração, ocasionando falhas na execução das tarefas de medicação de forma competente. A falta de trabalho em equipe e de liderança pode contribuir para cuidados de má qualidade e danos devidos à má gestão dos medicamentos. A comunicação através de escuta ativa e envolvimento é fundamental para a efetiva interação entre profissionais de saúde, pacientes e familiares.
Neste caso, pode-se imaginar um enfermeiro bem-intencionado tentando fazer o possível para coletar a medicação para seu paciente. Apesar de sua persistência ser louvável, provavelmente pode configurar-se também como um exemplo de viés de ancoragem. (8) Quando a solicitação é tão difícil de executar e tão incomum, é bem mais provável que seja um erro do que uma idiossincrasia do médico prescritor ou do paciente. Embora o enfermeiro estivesse, sem dúvida, tentando ser útil, o instinto de todos os profissionais de saúde deve mudar de “este é incomum, mas eu vou fazê-lo” para “este é incomum, não sei se está correto”.
Embora os profissionais de saúde que lidam diretamente com o paciente possam fazer mais para minimizar os seus próprios riscos em relação a erros de medicação, é importante reconhecer que esses erros geralmente decorrem de falhas do sistema, em vez de falhas de pessoas específicas. Posteriormente, a cultura do ambiente deve apoiar e incentivar os profissionais de saúde a notificarem erros de medicação e incidentes que não atingiram os pacientes. Tais profissionais devem se sensibilizar e solidarizar com as preocupações de seus colegas, estabelecer uma boa conduta e facilitar a mudança, aprendendo com as falhas do passado em um esforço para evitar os erros de medicação.
Pontos principais
- A boa comunicação entre profissionais de saúde que lidam diretamente com o paciente é um fator chave para minimizar o risco de produzir um erro de medicação.
- Os profissionais de saúde que lidam diretamente com o paciente podem se capacitar para reconhecer os alertas relacionados a erros de medicação.
- Os erros de medicação geralmente decorrem de falhas do sistema, em vez de falhas de pessoas específicas.
Elizabeth Manias, PhD, RN, MPharm
Professora
Melbourne School of Health Sciences
The University of Melbourne
Referências
- Brown JN, Barnes CL, Beasley B, Cisneros R, Pound M, Herring C. Effect of pharmacists on medication errors in an emergency department. Am J Health Syst Pharm. 2008;65:330-333. [ir para PubMed]
- Rothschild JM, Churchill W, Erickson A, et al. Medication errors recovered by emergency department pharmacists. Ann Emerg Med. 2010;55:513-521. [ir para PubMed]
- ISMP's List of High-Alert Medications. Institute for Safe Medication Practices. 2012. [Disponível em]
- Alsulami Z, Conroy S, Choonara I. Double checking the administration of medicines: what is the evidence? A systematic review. Arch Dis Child. 2012;97:833-837. [ir para PubMed]
- Chapuis C, Roustit M, Bal G, et al. Automated drug dispensing system reduces medication errors in an intensive care setting. Crit Care Med. 2010;38:2275-2281. [ir para PubMed]
- Institute for Safe Medication Practices (ISMP) Guidance on the Interdisciplinary Safe Use of Automated Dispensing Cabinets. Horsham, PA: Institute for Safe Medication Practices; 2008. [Disponível em]
- Carayon P, Wood KE. Patient safety—the role of human factors and systems engineering. Stud Health Technol Inform. 2010;153:23-46. [ir para PubMed]
- Redelmeier DA. Improving patient care. The cognitive psychology of missed diagnoses. Ann Intern Med. 2005;142:115-120. [ir para PubMed]
Este texto foi originalmente escrito em inglês. A AHRQ/PSNET permitiu a tradução deste artigo e cedeu os direitos de publicação ao Proqualis/Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde/Fiocruz, único responsável pela edição em português.
Publicado pela AHRQ/PSNET: Looking for Meds in All the Wrong Places [Casos e comentários]. Comentários de Elizabeth Manias, PhD, RN, MPharm. AHRQ PSNet [serial online]. Janeiro 2012. Disponível em: https://psnet.ahrq.gov/webmm/case/282.