Pelos direitos dos pacientes na saúde

Direitos e Deveres

Toda pessoa sob cuidados médicos tem direitos que precisam ser respeitados e que lhe garantem mais segurança e qualidade no atendimento, tanto em serviços de saúde públicos quanto privados. Promover a cultura de direitos humanos na esfera dos cuidados em saúde e contribuir para a prevenção de violações de direitos dos pacientes é o objetivo do Observatório Direitos dos Pacientes, uma inciativa do Programa de Pós-Graduação em Bioética e da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília (UnB). 

Em entrevista exclusiva ao Proqualis, a Dra. Aline Albuquerque, coordenadora do Observatório e professora da Pós-Graduação em Bioética da UnB, fala sobre os direitos dos pacientes e como a legislação brasileira trata o tema. Aline é advogada, com mestrado em direito, doutorado em Ciências da Saúde e Pós-doutorado em Direitos Humanos, e faz parte da Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente (Sobrasp).

 

Existem três tipos de direitos que podem ser associados aos pacientes: direitos humanos dos pacientes, direitos dos usuários e direitos do consumidor. Qual a diferença entre esses direitos?

Os direitos humanos dos pacientes são aqueles que qualquer pessoa detém quando se encontra sob cuidados de saúde, e eles derivam da dignidade humana. Os direitos humanos dos pacientes regulam a relação entre o paciente e os profissionais de saúde, os quais devem respeitá-los e promovê-los no encontro clínico.

São direitos dos pacientes: direito ao consentimento informado; direito à segunda opinião; direito de recusar tratamentos e procedimentos médicos; direito de morrer com dignidade, sem sentir dor e de escolher o local de sua morte; direito à informação sobre sua condição de saúde; direito de acesso ao prontuário; direito à confidencialidade da informação pessoal; direito ao cuidado em saúde com qualidade e segurança; direito a não ser discriminado; direito de reclamar; direito à reparação e direito de participar da tomada de decisão.

Os direitos do consumidor dizem respeito à configuração do paciente como consumidor e pressupõem a presença da relação de consumo e uma lógica consumerista, que não deve ser aplicada às relações de cuidados em saúde. Os direitos do consumidor, previstos no Código de Defesa do Consumidor, partem da ideia de que saúde é um bem de consumo, e os direitos dos pacientes, distintamente, concebem a saúde como um bem ético.

Quanto aos direitos dos usuários, esses são direcionados aos serviços de saúde, independentemente de a pessoa estar ou não sob cuidados de saúde. É o direito de acesso a esses serviços, bem como a insumos, medicamentos e outros bens correlatos. Os direitos dos usuários se alicerçam em regras de direito administrativo e de direito sanitário, como as normas de organização do Sistema Único de Saúde (SUS), e se dirigem aos gestores e provedores de serviços de saúde. Os direitos dos usuários estão previstos na Lei n.º 13.460, de 26 de junho de 2017, que dispõe sobre a participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública. No que tange ao acesso a bens e serviços de saúde, há ainda o direito à saúde, previsto no art. 6º e art. 196 da Constituição Federal de 1988.

Diversos países já possuem legislação específica sobre os direitos dos pacientes, como alguns países da África, da Europa e da América Latina, entre eles, Argentina, Chile e Equador. No Brasil, existe o Projeto de Lei n.º 5.559, de 2016, que ainda não foi aprovado.
 

Qual a situação desse Projeto de Lei no Brasil?

O Projeto de Lei n.º 5.559, de 2016, de autoria dos Deputados Federais Pepe Vargas (PT/RS), Chico D'Ângelo (PT/RJ) e Henrique Fontana (PT/RS), dispõe sobre o Estatuto dos Direitos dos Pacientes e foi fruto de árduo trabalho do Comitê de Bioética do Grupo Hospitalar Conceição – e do qual participei. É uma proposta legislativa marcada pela construção coletiva e dialogada. O PL se fundamenta no elenco internacionalmente acordado dos direitos dos pacientes, extraídos dos tratados de direitos humanos, tais como o direito à privacidade, o direito à informação e o direito de não ser discriminado, bem como no modelo do cuidado centrado no paciente.

O PL foi aprovado nas Comissões de Direitos Humanos e Minorias e de Seguridade Social e Família e, neste momento, está aguardando parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.
 

Na sua opinião, por que o Brasil, dentro da América Latina, não foi pioneiro nesse assunto?

Eu não conheço pesquisas no Brasil que busquem identificar os motivos pelos quais somos tão atrasados no tema ‘direitos dos pacientes’. Eu posso fazer conjecturas para a reflexão. Desse modo, apontaria alguns aspectos: a) o paternalismo médico predominante nas relações de cuidados em saúde, derivado da posição social do médico e do autoritarismo característico da sociedade brasileira; b) a escassez de conhecimento da população sobre informações em saúde, o que gera maior vulnerabilidade acerca da sua própria condição e confiança irracional no profissional de saúde; c) a falta de responsabilidade do paciente para com sua própria condição de saúde, atribuindo a outro, o médico, o poder de cura; d) a apropriação da temática no âmbito jurídico pelo direito do consumidor, o que conduziu a uma perspectiva consumerista e mercadológica da relação de cuidados em saúde, culminando com a judicialização dessa relação; e) a confusão entre direito do usuário e direito do paciente, notadamente na esfera do SUS, na qual o usuário sempre ocupou o papel de representante da sociedade civil, deixando de lado o paciente, que não pode ser confundido com o usuário, pois sua condição de saúde incrementa sua vulnerabilidade; f) a linguagem de direitos humanos não foi introduzida no SUS como balizadora das relações de cuidado em saúde.

De alguma forma, na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080, de 1990), alguns aspectos relacionados aos direitos dos pacientes já foram contemplados. O artigo 2º, por exemplo, diz que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”. Já no Capítulo II (Dos princípios e diretrizes), o artigo 7º trata da “preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral” (item III) e do “direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde” (item V).
 

Diante da existência da Lei Orgânica da Saúde, por que é necessário um projeto de lei específico para tratar desse assunto? Na sua visão, como ele se relaciona com a Lei Orgânica? 

A Lei Orgânica da Saúde não prevê direitos dos pacientes. O art. 2º, que trata do direito à saúde, diz respeito aos direitos dos usuários de acesso a bens e serviços de saúde e não aos direitos dos pacientes quando se encontram sob cuidados de saúde. Desse modo, verifica-se que o art. 2º prevê um direito dirigido aos gestores do SUS e provedores de serviços privados de saúde complementares ao SUS e não aos profissionais de saúde. Quanto aos princípios e diretrizes do SUS, como a própria denominação evidencia, são princípios e diretrizes e não direitos, logo, não há direitos dos pacientes na Lei Orgânica da Saúde.

Ressalte-se que a Lei Orgânica da Saúde é uma lei organizativa do SUS e não uma lei de direitos; portanto, não faz qualquer sentido atribuir tal função à Lei Orgânica da Saúde. Desse modo, não entendo que o PL 5.559/16 guarde relação com a Lei Orgânica da Saúde, isto é, o PL visa estabelecer direitos de pessoas que se encontram sob cuidados de saúde e a Lei Orgânica da Saúde assenta a estruturação de um sistema de saúde.

As leis de direitos dos pacientes começaram a ser adotadas na década de 1990. Assim, em grande parte dos países, há uma lei sobre direitos dos pacientes. Essas leis já se mostraram necessárias para conferir maior qualidade e segurança aos cuidados em saúde, bem como prevenir a judicialização dos conflitos que emergem da relação entre paciente e profissionais de saúde. Uma lei de direitos dos pacientes é essencial para criar um novo paradigma nos cuidados em saúde, superando o paradigma paternalista e estabelecendo o paradigma do cuidado centrado no paciente. 

 
Muito tem se falado atualmente sobre a participação ou o engajamento do paciente no seu cuidado. O PL sobre direitos dos pacientes que tramita no Congresso contempla a maior participação do paciente no seu cuidado? Existe alguma inovação nesse sentido?  

Não existem no Brasil leis nacionais que estimulem e prevejam o direito do paciente de participar do processo de tomada de decisão em saúde. O PL 5.559/16 estabelece o direito à privacidade, o direito à informação e o direito de não ser discriminado, e se fundamenta no modelo do cuidado centrado no paciente. Assim, pode-se afirmar que o PL é extremamente inovador ao inaugurar legalmente o dever de considerar o paciente protagonista do seu cuidado.
 

O que seria uma violação dos direitos humanos do paciente? Quais situações se enquadram nessa categoria?

As violações de direitos humanos dos pacientes são caracterizadas pelas violações de tratados de direitos humanos, tais como a Convenção Americana de Direitos Humanos. Como exemplo, no Caso Ximenes Lopes, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, ficou determinado que houve violação dos direitos à vida e à integridade pessoal do paciente, Damião Ximenes Lopes, morto em Clínica Psiquiátrica em razão de maus-tratos. No relatório do Observatório Direitos dos Pacientes sobre violações de direitos humanos de paciente em risco de suicídio, foram identificadas várias violações ao direito à privacidade (prescrição sem análise criteriosa de quartos de isolamento, monitorados por câmeras e escotilhas, ou designação de um funcionário para monitorar o paciente de 15 em 15 minutos), e ao direito a não ser submetido a tratamento desumano ou degradante (como a utilização de discurso humilhante, com o uso de expressões como: “Você não queria morrer? Agora aguenta a dor!”; “Da próxima vez, pula do décimo andar. Pular do quarto não mata”; “Você não quer morrer, quer chamar a atenção”; “Da próxima vez, faz direito” etc.), entre outras.
 

Quais são as causas mais frequentes dessas violações? Ou os fatores determinantes para elas?  

As violações de direitos humanos dos pacientes derivam de uma série de fatores, tais como: a) ausência de cultura de direitos humanos nos serviços de saúde; b)  inexistência de formação dos profissionais de saúde em direitos humanos nos cursos de graduação; c) discriminação estrutural, como as discriminações relacionadas à renda, à raça, ao gênero e outras; d) cuidados em saúde permeados pela lógica mercadológica e consumerista que impacta negativamente os pacientes e os profissionais de saúde; e) cultura paternalista dos cuidados em saúde acoplada à desconsideração da voz do paciente; f) indústria da judicialização e da responsabilização do profissional de saúde, o que deteriora a relação humana e impede a implantação de mecanismos de solução extrajudicial de conflitos; g)  medicalização da vida, o que acarreta o excesso terapêutico e medicamentoso, em dissonância com os direitos humanos dos pacientes.
 

Como podemos enfrentar esses fatores? 

Creio que há várias formas, e a primeira delas deveria ser contar com uma lei que disponha sobre o Estatuto dos Direitos do Paciente, na medida em que a lei sinaliza para a sociedade novos valores e promove a alteração de condutas. Além disso, a lei deveria estar conjugada com a previsão de mecanismos de promoção dos direitos dos pacientes nos hospitais e de prevenção e solução de conflitos. A formação dos profissionais de saúde deveria ser mais voltada para o respeito aos direitos humanos dos pacientes, o modelo do cuidado centrado no paciente e o engajamento do paciente. É essencial contar com uma política pública endereçada aos direitos dos pacientes, a ser levada a cabo pelo Ministério da Saúde, como existe há décadas em vários países do mundo.
 

Um paciente que sofreu um evento adverso no serviço de saúde – por exemplo, durante a sua internação, recebeu um medicamento errado – e, por conta desse erro, teve uma complicação. Quais são os direitos do paciente nesse caso e como ele deve proceder?

Infelizmente, no Brasil, em geral, não há mecanismos de solução extrajudicial de conflitos nos hospitais; logo, o paciente pode tentar um acordo com o estabelecimento de saúde ou, caso não consiga, propor uma ação judicial. Mas não creio que esse modelo seja benéfico para o paciente ou para o profissional de saúde, nem para o hospital. Há que se investir na promoção dos direitos dos pacientes, pois, quando esses direitos são respeitados, há um incremento na segurança do paciente e riscos de eventos adversos são evitados.

Ademais, sustento que a mediação e outras formas de resolução extrajudiciais de conflitos deveriam ser amplamente adotadas no Brasil. O foco dos direitos dos pacientes não deve recair sobre o post factum, ou seja, sobre a reparação dos danos decorrentes do evento adverso, mas sim sobre a prevenção de tais danos. Caso o dano ocorra, sustento que o Brasil deveria refletir sobre o sistema de reparação sem culpa, adotado em outros países, no qual o paciente deve apenas demonstrar o dano decorrente do cuidado, sem buscar culpar o profissional.
 

Qual foi a principal motivação para a criação do Observatório Direitos dos Pacientes?

O Observatório Direitos dos Pacientes foi criado no final de 2016 e conta, atualmente, com 27 alunos de mestrado e de doutorado, bem como com mestres e doutores em bioética pelo Programa de Pós-Graduação em Bioética (PPGBioética) da UnB. O Observatório tem o objetivo precípuo de sistematizar informações sobre os direitos dos pacientes no Brasil, sob a perspectiva da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, e disseminá-las com o intuito de promover a cultura de direitos humanos na esfera dos cuidados em saúde e de contribuir para a prevenção de violações de direitos dos pacientes.

O Observatório Direitos dos Pacientes também tem como foco lidar com o enfrentamento das situações violadoras dos direitos humanos dos pacientes. Por isso, se incube de divulgar casos de violação de direitos humanos dos pacientes e de realizar recomendações para agentes estatais com o objetivo de contribuir para a alteração dos fatores determinantes de tais violações. O Observatório enfoca prioritariamente os direitos humanos dos pacientes, ou seja, aqueles direitos que os pacientes têm quando estão sendo cuidados por profissionais de saúde, independentemente de ser ou não uma relação de consumo. Assim, o Observatório Direitos dos Pacientes tem como foco a promoção dos direitos humanos do paciente, que não se confundem com os direitos do usuário e os direitos do consumidor.
 

Quais as principais iniciativas do Observatório?
 
Em 2017, o Observatório elegeu o tema das violações de direitos humanos dos pacientes em risco de suicídio. Foi realizada pesquisa a partir de entrevistas com profissionais de serviços de saúde de urgência e emergência de Brasília, Salvador, Porto Alegre e Goiânia e, a partir dos relatos e da sua análise, foi elaborado um quadro inédito no país acerca da categorização de práticas em saúde mental como violação de direitos humanos. Essa pesquisa foi transformada em relatório, que foi revisado pelo Núcleo de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Fiocruz-DF. Esse Relatório foi amplamente divulgado no evento sobre ‘Violação de Direitos Humanos de Pacientes em Risco de Suicídio’, realizado em novembro de 2017 na Fiocruz-DF. No evento, foram realizadas várias palestras sobre a temática, inclusive com a participação da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Ainda no ano de 2017, essa pesquisa foi apresentada no I Congresso Ibero-Americano de Direito Sanitário, promovido pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).  
 
Em 2018, o Observatório escolheu a temática dos cuidados paliativos e direitos humanos e elaborou um documento singular no Brasil sobre o marco conceitual relativo à interface entre cuidados paliativos e direitos humanos. Esse documento foi lançado e apresentado em novembro de 2018 no I Seminário Brasileiro de Direitos dos Pacientes, organizado pelo Observatório em parceria com o Hospital de Apoio de Brasília, o Grupo Hospitalar Conceição de Porto Alegre, o Comitê de Bioética da OAB-DF, o Observatório de Doenças Raras do PPGBioética da UnB e o Programa de Direito Sanitário da Fiocruz-DF. O I Seminário foi aberto pelo Deputado Federal Pepe Vargas, autor do PL 5.559/16 sobre os direitos dos pacientes e contou com a participação de mais de 150 pessoas de diversos estados do Brasil.