Em 1º de abril de 2023 completam-se 10 anos da criação do Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). A criação do PNSP foi uma resposta à ocorrência sistemática de erros associados aos cuidados de saúde, chamados erroneamente, até hoje, de “erros médicos”. De 2013 a 2018, o Comitê de Implementação do PNSP exerceu suas atividades, que envolviam iniciativas significativas e um importante papel consultivo no âmbito do Ministério da Saúde. O Comitê foi desarticulado no contexto da política do governo passado, de enfraquecimento da participação social.
Impulsionado pela criação do PSNP, verificou-se um movimento pulsante em prol da segurança do paciente no Brasil país. Assim, foram feitos inúmeros progressos na organização das unidades de saúde, principalmente hospitais, na provisão de uma assistência mais segura. Foram implantados núcleos de segurança do paciente em todo o país, com a tarefa de elaborar planos de ações, implementar práticas de cuidado mais seguras, educar os profissionais de saúde e notificar a ocorrência de danos no cuidado. Também foram realizadas mudanças nos currículos da formação universitária em saúde.
Todas essas ações nos âmbitos institucional, político e educacional impactaram positivamente centenas de unidades de saúde e o tema Segurança do Paciente começou a fazer parte da agenda da gestão da saúde nos municípios, nos estados e na União. Mas, apesar desses progressos, ainda não se pode constatar uma diminuição expressiva nos danos aos pacientes hospitalizados ou atendidos em clínicas de família, centros de saúde, UPAs e maternidades, ao longo dos últimos 10 anos, os quais se mantiveram como parte do cotidiano dos serviços de saúde em todo o país.
A pandemia da Covid-19 também contribuiu para certo grau de desorganização de práticas mais seguras, considerando que as prioridades passaram a ser claramente a disponibilidade de leitos, de respiradores, de profissionais e mesmo de oxigênio medicinal. A despeito da pandemia, as notícias das últimas semanas – talvez pelo acúmulo num período curto de tempo, da ocorrência de danos gravíssimos aos pacientes, como óbito ou lesões graves – são chocantes para todos nós e chamam atenção para questões estruturais dos serviços de saúde do país.
Uma gestante saudável tem sua mão e punho amputados no pós-parto, em decorrência de um procedimento de rotina para administração de medicamentos na veia. Outra gestante morre numa ambulância após a queda de um equipamento médico em seu corpo. Também temos acompanhado notícias de estupro de vulneráveis em hospitais e UPAs. Ainda que não estejam disponíveis ou não tenham sido realizadas análises profundas das causas que levaram a esses eventos, podemos afirmar que eram evitáveis, considerando a disponibilidade de evidências científicas e do conhecimento acumulado para a sua prevenção.
Diferente de tragédias na aviação (voo AF 477 Rio-Paris), de catástrofes ambientais (Mariana, Brumadinho, Golfo do México) e em usinas nucleares (Chernobyl e Fukushima) que envolveram elevado número de vítimas num único evento, os danos associados ao cuidado de saúde – gravíssimos e evitáveis – distribuem-se por todo o mundo e em nosso território nacional, especialmente, ocorrendo em qualquer serviço de saúde, seja público ou privado. Ao se contabilizar os casos individuais de óbitos e de lesões graves associados aos cuidados em saúde, temos a sensação de que estamos falhando, como sociedade, e de que precisamos urgentemente rever nossos valores coletivos.
É importante nos indagarmos: é possível retomar o rumo da Segurança do Paciente e desenvolver um caminho onde o direito ao cuidado de saúde seguro seja uma realidade? O Brasil dispõe de conhecimento, organizações, pesquisas e profissionais qualificados para reverter esse quadro. Mas, antes de tudo, a decisão que precisa ser tomada é no nível ético. A sociedade brasileira deve se comprometer com o respeito aos pacientes e ser intransigente com a eliminação dos danos graves e evitáveis associados ao cuidado em saúde. O acesso a esses cuidados é essencial e um direito, mas acesso sem segurança não é efetivação de direito, mas sim sua violação. Não podemos mais ouvir uma mãe dizer que não consegue amamentar ou dar banho em seu bebê por ter a mão e o punho amputados no pós-parto. Nunca mais!
*Victor Grabois é presidente da Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente (SOBRASP), médico sanitarista, mestre e doutor em saúde pública e coordenador executivo do Proqualis/Icict/Fiocruz.
*Aline Albuquerque é diretora SOBRASP, advogada da União, doutora em Ciências da Saúde e professora de Pós-Graduação em Bioética da UNB.
Apesar dos avanços nos últimos 10 anos, ainda não houve diminuição expressiva nos danos aos pacientes hospitalizados ou atendidos em serviços de saúde