Plano de gerenciamento de tecnologias em saúde é fundamental para prevenção de eventos adversos graves envolvendo equipamentos hospitalares

O Portal Proqualis entrevistou o engenheiro clínico Lúcio Flávio de Magalhães Brito, CCE, consultor na área de planejamento e gerenciamento de tecnologia em saúde, para falar sobre implementação de medidas e práticas para a Segurança do Paciente na área da Engenharia Clínica. 

Autor pessoal: 
Isis Breves;

No   No dia 25 de setembro, foi noticiada a morte de uma jovem de 19 anos, após ser atingida na cabeça por um aparelho na UTI na Santa Casa de Barretos, São Paulo.  A notícia do grave evento adverso é do Site de notícias G1 das Organizações Globo. A estudante se recuperava de traumatismo craniano sofrido após uma queda de cavalo. Quando o paciente sofre algum dano causado por um aparelho do ambiente hospitalar é um evento adverso grave. Porém, esse tipo de evento pode ser evitado através da implementação de medidas e práticas para a Segurança do Paciente.

                O Portal Proqualis entrevistou o engenheiro clínico Lúcio Flávio de Magalhães Brito, CCE, consultor na área de planejamento e gerenciamento de tecnologia em saúde, para falar sobre o assunto.

Proqualis - É lamentável que ainda aconteça evento adverso com dano grave desse tipo. Uma jovem de 19 anos morrer pela queda de um aparelho da UTI em cabeça. Um evento evitável. Qual é magnitude desse tipo de evento? Há algum dado da engenharia clínica para se ter dimensão do problema?

Lúcio Flávio de Magalhães – No Brasil, nossa estrutura de coleta e análise de dados de acidentes, está apenas começando, por isso a avaliação da magnitude de um evento desta natureza, termina por ficar comprometida. O que podemos fazer agora, é analisar o passado e tomar medidas voltadas para o futuro do modelo de gerenciamento tecnológico que o hospital vai adotar para oferecer menor quantidade de riscos aos seus pacientes. Apenas casos de maior visibilidade são comentados como esse, ocorrido na Santa Casa de Barretos o que limita o reconhecimento da existência do problema.

Ainda em termos de engenharia clínica, sabemos que a ANVISA, através da RDC 02/2010, determinou que as tecnologias em saúde (equipamentos de saúde, fármacos, saneantes e cosméticos) devem ser utilizadas através de um plano, e do seu gerenciamento, de modo a garantir a sua rastreabilidade, qualidade, eficácia, efetividade e segurança e, no que couber, desempenho, desde a entrada no estabelecimento de saúde até seu destino final, incluindo o planejamento dos recursos físicos, materiais e humanos, bem como, da capacitação dos profissionais envolvidos nestes processos. É uma RDC recente e por isso os dados, quando existem, são localizados. Nossa maior capacidade de contribuição num caso como este, seria no conjunto de informações que podemos oferecer ao mesmo, ao esclarecimento de um ou outro fato. Informações como: data de compra, data da instalação, requisitos do fabricante para instalação do equipamento, evidências de treinamento dos usuários, aceite da instalação do equipamento, enfim, manter, a exemplo do prontuário médico, o prontuário do equipamento em dia, bem ajustado e capaz de refletir de maneira precisa, como o equipamento é empregado no hospital. Todo o seu histórico contribui com a elucidação de casos como esses.  E ajudam a estabelecer o próximo estágio ou nível de atenção.

Proqualis – Segurança do Paciente envolve a participação de todas as áreas.  Neste sentido, qual é o papel da engenharia clínica (EC) na prevenção de eventos adversos evitáveis?

Lúcio Flávio de Magalhães – Antes de falar sobre a Engenharia Clínica é importante ter uma visão sistêmica do papel da engenharia nos hospitais e nos eventos adversos que ocorrem dentro destes Estabelecimentos Assistenciais de Saúde. Desde o primeiro traço do arquiteto hospitalar, os riscos vão se apresentando. Depois de construídos, os hospitais passam por engenheiros hospitalares e engenheiros clínicos, dois tipos de engenheiros que se complementam nos cuidados diários com as tecnologias em saúde embarcadas em cada hospital.  Na reportagem, a partir do relato do caso, pouco se pode concluir, porém, veja alguns dos quesitos que podem ser formulados para o melhor entendimento dos fatos: O equipamento foi instalado como recomendado pelo fabricante? O fabricante forneceu orientações sobre a instalação do equipamento? Os riscos inerentes a este equipamento eram conhecidos? Foram esclarecidos pelo fabricante? Estavam endereçados e cuidados desde o momento da aquisição até a obsolescência? As responsabilidades dos envolvidos com este equipamento estavam definidas, eram claras? O serviço de engenharia foi acionado logo após a ocorrência do evento? Houve alguma investigação prévia/imediata do acidente? Estas perguntas são apenas exemplos de respostas possíveis, que devem ser entendidas e utilizadas pela equipe de investigação do acidente do hospital, para esclarecer os fatos e discernir sobre o que exatamente ocorreu. Estas perguntas não são as únicas, quanto mais se conhece do caso, melhores são as perguntas formuladas, assim pode-se evitar novos acidentes semelhantes.

Quanto ao papel da engenharia clínica, de maneira geral, está focada no funcionamento do equipamento propriamente dito e nos processos gerenciais que cada tecnologia, como ele, requer. O equipamento está desempenhando bem? As medidas que realiza são verdadeiras? Se não, quais são as fontes erros? São erros aleatórios, ou erros sistemáticos que se pode compreender e trabalhar com eles, mesmo que os equipamentos não estejam exatamente bem? O equipamento deve participar de um programa de manutenção preventiva? Se não, por que? Se sim, por que? São muitas as perguntas, por isso precisamos de profissionais especializados em hospitais. Em todos os níveis de formação. Engenheiros, técnicos e tecnólogos em sistemas biomédicos. São muitas as tecnologias e, o que se pode dizer é que, uma engenharia clínica bem desenvolvida, pode contribuir muito para a redução de acidentes da natureza do mencionado na reportagem.

Proqualis – Comparando a realidade da engenharia clínica no Brasil com a de países mais desenvolvidos, que instrumentos os profissionais desta área dispõem para avaliar a segurança relacionada aos equipamentos médico-assistenciais como o envolvido neste caso – monitor beira de leito.

 

Lúcio Flávio de Magalhães – Todos os anos, a FDA nos EUA, recebe várias centenas de milhares de relatórios de dispositivos médicos (MDRs – Medical Device Report) relacionados a suspeitas de mortes associadas a dispositivos, ferimentos graves e avarias ou mal funcionamento. O FDA usa os MDRs para monitorar o desempenho de cada dispositivo, detectar possíveis problemas de segurança relacionados a eles e contribuir para a avaliação da relação entre os riscos e os benefícios desses produtos. Ajudam a inferir sobre os resultados em saúde que proporcionam em situação real. O banco de dados MAUDE (Manufacturer and User Facility Device Experience) é formado por MDRs submetidos à FDA de maneira obrigatória por fabricantes, importadores e instalações usuárias de dispositivos médicos e ainda, através de relatórios voluntários elaborados por profissionais de saúde, pacientes e consumidores.

 

Embora os MDRs sejam uma valiosa fonte de informação, esse sistema de vigilância passiva tem limitações, incluindo a possível apresentação de dados incompletos, imprecisos, intempestivos, não verificados ou tendenciosos. Além disso, a incidência ou prevalência de um evento não pode ser determinada, de maneira simples, a partir deste sistema de relatórios, devido ao risco potencial de informações insuficientes e à falta de informações sobre a frequência de uso de um ou outro dispositivo. Por isso, os MDRs compreendem apenas uma das várias fontes importantes de dados de vigilância pós-venda do FDA. Eles devem ser conhecidos e utilizados pelos engenheiros clínicos e profissionais aliados na área da saúde, como fonte de pesquisa e entendimento sobre os tipos de acidentes que acontecem.

 

Uma rápida busca na base de dados MAUDE (https://www.accessdata.fda.gov/scripts/cdrh/cfdocs/cfmaude/search.cfm) constatamos que há um conjunto muito grande de tipos de acidentes em que este do artigo pode estar enquadrado: problemas relacionados à instalação, falta de documentos sobre o histórico de manutenção, falha em sistemas de fechamento ou travamento, problemas mecânicos, método impróprio ou incorreto, localização errada, mal posicionamento do equipamento, localização errada, montagem errada, etc. São várias as causas, o que torna o processo da investigação do acidente, o melhor instrumento que se pode dispor. Isto envolve uma equipe multiprofissional.

 

Outros instrumentos de trabalho dos profissionais da engenharia clínica são: os Top Ten Health Technology Hazards publicados pelo ECRI (EUA), anualmente e ainda, a base de dados de Alertas e Recalls publicados pelo FDA (https://www.accessdata.fda.gov/scripts/cdrh/cfdocs/cfres/res.cfm) que devem ser consultadas frequentemente. Organizações como o Emergency Care Research Institute (ECRI) também oferecem serviços destinados a engenheiros clínicos como o Health Devices Alerts (HDA), que se trata de informações objetivas sobre equipamentos médico-assistenciais. Países como Inglaterra, Canadá e Japão também dispõe de sistemas semelhantes que podem ser úteis aos engenheiros clínicos e profissionais que se interessam pela área de riscos ao paciente, envolvendo equipamentos médico-assistenciais.

 

Proqualis - Quais as medidas podem ser realizadas para que os eventos adversos relacionados a equipamentos possam ser reduzidos ou eliminados?

 

Lúcio Flávio de Magalhães – É difícil resumir, mas é importante reconhecer que, para cada equipamento há benefícios de um lado, do outro, os riscos. É preciso ter isso sempre em mente. Quanto mais e melhor os riscos são reconhecidos, melhor para todos. Aqui, reconhecer significa: saber que existe; saber apontar, indicar o risco de maneira precisa. Depois, é preciso medir sua magnitude, se é grande ou pequeno comparado com determinados padrões. Daí nascem as medidas de controle, redução e mitigação dos riscos. Como cada risco ou grupo de riscos recai sobre diferentes profissionais, há que haver comunicação entre eles, e de boa qualidade.

 

Os hospitais no dia de hoje e, cada vez mais no futuro, vivem uma enorme dependência das tecnologias em saúde em geral e dos equipamentos de saúde em particular. Os equipamentos de saúde por sua vez, envolvem milhares de outros, divididos em gerais, apoio, infraestrutura e os médico-assistenciais. Todos eles trazem benefícios e riscos que devem ser bem conhecidos antes da sua incorporação ou adoção pela estrutura do hospital. Isto requer dos profissionais o pleno conhecimento das fontes de riscos e dos mecanismos de ação relacionados a cada um deles. Infelizmente, somente os mais comuns e óbvios são conhecidos como: radiações ionizantes, quedas de equipamentos ou do leito, queimaduras com bisturi elétrico, produção de materiais estéreis, etc. Há outros incomuns como por exemplo aquele em que o médico, durante uma injeção de contraste no paciente, é atingido pela parte móvel de um equipamento de escopia por radiações ionizantes e administra uma quantidade maior do marcador, causando, possivelmente um dano ao paciente. Alguns acidentes são difíceis de se imaginar e prever. Por esta razão, o melhor instrumento de que os hospitais dispõem é a investigação de acidentes e o tratamento desta questão durante 100% do tempo. Para que a investigação seja bem-sucedida, o cenário do acidente deve ser mantido (o que não ocorre na maioria das vezes) e a equipe, com uma metodologia reproduzível, pode trabalhar para reconhecer, avaliar e propor medidas para evitar que o acidente ocorra novamente. No meu ponto de vista particular, os processos relacionados a este tipo de investigação são rudimentares ainda e precisamos conseguir uma maneira de mudar esta situação.

 

Outro ponto importante a considerar é que os hospitais dispõem de estrutura para garantir a segurança do trabalhador, entretanto, este recurso não está ainda, integrado à segurança do paciente. Como muitos dos riscos oferecidos para os pacientes, também são oferecidos aos trabalhadores, não vejo razão para que os profissionais do SESMT (Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho), mantenham, na maioria das vezes seus processos de trabalho não alinhados ao trabalho dos grupos de segurança do paciente ou de controle de infecção hospitalar. É preciso trabalhar para unir estes interesses. Afinal um paciente que passa por um procedimento de iodoterapia é, de certo modo, uma fonte de risco ambulante, mas muito poucos sabem ou vivem isso, o que torna este risco, de certa maneira, ocultos. Poderia ser mais conhecido por todos os que militam na área de riscos.

 

Proqualis - Que orientação pode ser dada aos administradores hospitalares em relação aos acidentes que podem ser originados pelos equipamentos de saúde em geral e aos médico-assistenciais em particular, como definidos pela RDC 02/2010?

 

Lúcio Flávio de Magalhães – De maneira resumida é importante considerarem que, (1) Todo recurso tecnológico em saúde trás consigo, riscos mais ou menos ocultos. Todo esforço deve ser feito para que estes sejam reconhecidos antes mesmo de sua aquisição; (2) A administração deve garantir que todos os profissionais conheçam estes riscos e que estejam preparados para enfrentar situações que se apresentam durante seu uso e aplicação; (3) Manter equipe de profissionais treinados para fazer investigação de acidentes e entender mais e melhor a frequência com que ocorrem e também a sua gravidade; (4) Propor medidas para reconhecer, avaliar e propor medidas para eliminar, controlar ou reduzir os riscos ora identificados; (5) Saber que existem muitas fontes de riscos no ambiente hospitalar e mecanismos de ação muito variados e que, trabalhar  de maneira proativa para conter os riscos é a melhor ferramenta de trabalho para evitar que ocorram; (6) Decidir seguir programas de qualidade na área hospitalar, sempre é um bom começo. Há diferentes níveis de exigência que podem ser utilizados para melhor endereçar a solução de riscos potenciais de maneira escalável; (7) Sair do lugar comum, ampliar a zona de conforto do hospital, frente aos riscos identificados e compartilhar responsabilidades de maneira clara; (8) Envolver as partes interessadas CIPA, SESMT, SCIH, Brigada Contra Incêndio, Engenharia Clínica, Arquitetura, Engenharia Hospitalar, etc. num movimento quase único pela segurança do paciente; (9) Não tratar o dinheiro empenhado em segurança, na contas contábeis, como despesa, mas como investimento, algo que retorna e, se bem planejado, muitas vezes maior que o numerário aplicado; (10) Se propor a realizar o mínimo que é estudar, entender e aplicar a RDC 020/2010. É um parâmetro mínimo para o planejamento e o gerenciamento das fontes de riscos e dos seus mecanismos de ação que, a exemplo da reportagem, nos mostram de maneira clara, os resultados danosos que podem levar. Não quero dizer que ele foi a causa de uma fatalidade, é preciso investigar e obter a colaboração de todos.