Segurança dos Doentes: uma abordagem prática
A Segurança do doente, enquanto componente central da qualidade dos cuidados de saúde, assumiu grande relevância nas últimas duas décadas, tanto para os doentes e seus familiares que desejam sentir-se confiantes e seguros, como para os profissionais de saúde cuja "missão" principal consiste na prestação de cuidados com elevado nível de efetividade, eficiência e baseados na melhor evidência disponível.
Consequentemente, tem-se assistido a um crescente número de publicações, quer sobre a forma de artigos científicos e de livros temáticos, quer de documentos e relatórios de instituições, a nível nacional (e.g. o National Health Service do Reino Unido, através da National Patient Safety Agency ou do Department of Health) e internacional (e.g. Organização Mundial de Saúde). Não obstante, é ainda muito escassa a literatura, lato sensu, que é publicada em Português.
O livro intitulado Segurança dos doentes: uma abordagem prática, da autoria de José Fragata, apresenta uma objetividade, um rigor e uma clareza tal que proporciona uma leitura atenta, dedicada e prazerosa, da primeira à última página.
O fato de José Fragata aliar uma vasta experiência clínica - como cirurgião cardíaco, a uma extensa carreira acadêmica - professor catedrático de cirurgia- possibilitou obter como resultado uma obra que mistura, de forma harmoniosa, um pouco da realidade prática da prestação de cuidados de saúde, com uma análise, um sentido crítico e uma reflexão devidamente fundamentadas.
O presente livro constitui um contributo muito relevante para quem quer aprofundar conhecimentos, não só sobre os aspectos mais concretos da Segurança do Doente, mas também, de outros que lhe são conexos, como as questões da liderança e da cultura organizacional; do treino e gestão de equipes e; as implicações legais do erro, para referir apenas alguns exemplos. Para tal, José Fragata convidou alguns peritos que aliam um forte componente acadêmico a uma vasta e reconhecida experiência nas suas diferentes áreas de "especialidade".
Os primeiros dois capítulos do livro são dedicados às questões do risco em saúde e à necessidade de gerir bem esses riscos. Como é sabido o risco não é exclusivo da área da saúde. Iezonni (2003) afirma que o risco é uma constante nas diversas atividades do nosso quotidiano e que no dia a dia somos confrontados constantemente com opções que temos de tomar, opções essas que envolvem maior ou menor risco. Fragata também refere nestes capítulos a outras atividades de risco (e.g. andar de avião, escalar montanhas) classificando-as de acordo com o valor "sigma", encontrando-se a prestação de cuidados de saúde entre as atividades humanas de maior risco potencial (sigma 2).
Os capítulos 3, 4 e 5 são dedicados às definições de alguns dos conceitos centrais, quais sejam, o erro, os incidentes e os acidentes, bem como à explicitação dos principais mecanismos que estão por detrás da sua ocorrência. A taxonomia, nesta área, tem tanto de importância como de dificuldade. Se por um lado é fundamental uniformizar conceitos para se tentar evitar uma verdadeira "torre de babel", onde cada um fala uma linguagem diferente, também é verdade que alguns desses conceitos não são exclusivos da área da saúde (têm já um histórico conceptual noutras áreas). Acrescente o fato de que, pela diversidade de "formas" e de impacto que causam, nem sempre o seu "comportamento" é linear. O modelo de James Reason (queijo suíço) é utilizado pelo autor para explicar a gênese dos "acidentes" em organizações complexas. São igualmente evidenciados as implicações das falhas latentes e das falhas ativas na ocorrência de erros e de acidentes, bem como a importância das defesas e das barreiras para evitar ocorrências indesejáveis.
É lugar-comum afirmar que as causas que levam à ocorrência de um evento adverso são multifatoriais, podendo ser identificados dois grandes grupos de fatores: humanos e os organizacionais (relacionados com o sistema com o meio/contexto). Atento à relevância destas questões, Fragata dedica um capítulo a cada um dos grupos de fatores.
A análise da variabilidade na prática clínica e, principalmente dos resultados decorrentes da prestação de cuidados de saúde, tem hoje um estatuto central na avaliação da qualidade e da segurança. Ciente disso, Fragata dedica um capítulo ao tema "Variação e acaso". A abrir o capitulo cita Sir William Osler que, no inicio do Século XIX, referiu a propósito da medicina que esta "...era a arte do incerto e a ciência da probabilidade". Tal fato parece dever-se, em grande parte, à natureza variável da decisão e da prática clínica, bem como à gravidade (complexidade) da doença (doente).
Como não podia deixar de ser, este livro tem um capítulo dedicado aos "locais" e áreas onde o risco de ocorrência de erros e de eventos adversos é maior (devido à sua estrutura complexa, interdependência, intensidade e complexidade de atividades, etc..) quais sejam: as unidades de cuidados intensivos; o bloco operatório; a pediatria; a anestesiologia; o circuito do medicamento (desde a prescrição até à administração); as Infeções hospitalares: as úlceras de decúbito e as quedas. Também neste capítulo a "mensagem principal" é complementada, de forma elucidativa, com alguns exemplos, esquemas, quadros, gráficos e imagens que refletem o quotidiano das organizações de saúde.
Se tivéssemos de dividir a análise deste livro em duas partes, seria aqui que o faríamos. Seguindo essa lógica, diríamos que a primeira parte foi dedicada a aspetos centrais da segurança do doente. Tratou-se de uma componente mais enquadradora e conceitual onde os principais conceitos foram definidos e relacionados. Se o livro ficasse por aqui, já teria valido a pena!
A "segunda parte" permite enquadrar outros aspetos conexos, mas igualmente importantes, da segurança do doente, quais sejam: as questões da liderança e da cultura organizacional; o treino e gestão de equipes; as questões do direito e a segurança do doente; e o envolvimento do doente e seus familiares. Para terminar, dois capítulos de índole mais operacional/prático. Um primeiro que descreve e discute os aspetos práticos de como organizar um sistema de gestão do risco e segurança numa organização de saúde - hospital (relevante não só para profissionais de saúde, em geral, mas também para gestores/administradores da área da saúde).
Para finalizar o livro, um capítulo que aborda a importância em se conhecer a dimensão, tipologia e natureza dos eventos adversos em hospitais, recorrendo à metodologia de análise dos processos/prontuários clínicos (com apresentação sucinta dos resultados do estudo piloto realizado em hospitais portugueses).Esta "resenha" não ficaria completa sem "ouvirmos" o autor sobre, o que terá levado um cirurgião cardíaco a escrever um livro sobre a segurança dos doentes?
"Bem, este livro é, na verdade, o terceiro de uma sequência, o "Erro em Medicina" (2004) e o "Risco Complexidade e Performance" (2006), que estiveram na preparação do presente texto e traduzem uma permanente preocupação com os temas do erro, da avaliação da performance e da segurança dos doentes.
Na verdade, a cirurgia cardíaca foi sempre pioneira nas questões de avaliação do desempenho e de segurança na prática clínica, talvez porque se trata de uma especialidade entre as mais exigentes, ainda hoje associada a um nível considerável de risco. Para o desempenho na cirurgia cardíaca convergem competências individuais, fatores de equipe, o perfil da organização, a natureza incerta das tarefas e também o acaso. Estas são as mesmas condicionantes da insegurança da Medicina!
A vivência de uma longa carreira como cirurgião cardíaco terá despertado o interesse pelo tema e terá levado a que escrevesse esta obra, onde é abordado de forma muito prática e diretamente vivida, o tema da "Segurança dos Doentes".
Paulo Sousa e Vanessa Rodrigues